Charles Mártir E O Segredo Do Universo

VII

A biblioteca de Natã ficava no piso térreo do casarão, logo depois da cozinha. Era um quarto alto e circular, com estantes entupidas de livros e algumas pilhas pelo chão. Pessoas alérgicas eram normalmente aconselhadas a não passarem a menos de cinco metros de distância da porta, isso quando ela estivesse fechada. Não era o caso dos dois, na verdade eles até gostavam do cheiro de livros velhos e viam o mofo como parte do círculo de amizade.
Natã acendeu a luz e um velho lustre de cristal todo desdentado iluminou a sala com um tom amarelado. Havia quatro poltronas de couro preto, muito confortáveis, e eles encostaram as duas de maneira a ficarem lado a lado. Enquanto o notebook em frente a eles ligava, o Dr. Cavalheiro explicou:
-Estamos assim: uma assistente social está indo para Piltor essa tarde, carregando consigo um mandato que garante o direito de ela entrar e falar com os meninos e pode, se achar necessário, recolhê-los hoje mesmo. As acusações abertas contra Sebastião Martins são as de maus tratos, tortura e agressão de incapaz. Com seu vídeo em punho nós podemos, falando no popular, pedir a guarda dos meninos "descaradamente".
-Pedir? O cara bate no menino todo dia Alê! O vídeo e o testemunho dos garotos não são o bastante? Olha isso cara... –Natã selecionou o vídeo e deu play na cena de seis segundos, além de coloca-la para repetir. Após ver duas vezes seguidas, Alexandre fechou o flip do note e demonstrando um grande desconforto falou:
-Infelizmente isso só cabe ao juiz, que não sou eu e nem você! Mas escuta isso: podemos ir juntos com a assistente social para Piltor. Ela vai partir às treze horas em ponto, dali do centro, perto do meu escritório. A gente pode mostrar o vídeo para ela e você dá seu relato o caminho todo. Vamos fazer de tudo pra trazer os meninos pra cá hoje mesmo, no máximo amanhã cedo. Esse caso é bem extremo Natã e se isso -disse apontando para o note, -é todo dia mesmo, a gente precisa agir o quanto antes!
Fora o melhor diálogo que Natã tivera no ano. Partiriam naquela tarde lado a lado com a assistente social. Mal podia esperar para ver a cara de Adriano quando o encontrasse no mesmo dia, pronto para libertar ele e seu irmão daquele inferno. Nada poderia dar errado, o destino conspirava a favor deles!
A questão é que conspirar a favor depende muito da perspectiva.