Os acontecimentos daquela tarde não merecem ser descritos com cuidado nos detalhes por dois motivos: Primeiro, porque ultrapassam a linha do absurdo. Apenas apresentam um filme já visto incontáveis vezes por todos nós, onde se assiste de mãos atadas ao quanto uma cultura retrógrada pode degenerar os direitos mais básicos de alguém.
Segundo, pois como o próprio Natã diria mais tarde, "O vídeo estava gravado, a assistente social se encaminhando e meu melhor amigo e advogado dando andamento ao processo. Charles e Adriano já eram meus!!".
Sendo assim, acho que é importante dizer apenas que o delegado, novamente, não viu nada demais na maneira como Sebastião educava seus filhos. Os meninos foram obrigados a voltar para sua casa e Natã quase passou a noite na cadeia, não fosse o acordo que fez: ele iria embora no dia seguinte, pela manhã, e enquanto estivesse ali não deveria incomodar Sebastião, que novamente teve a bondade de não registrar um B.O.
A bem da verdade, eles queriam que ele fosse embora naquela mesma tarde, mas Natã conseguiu ser frio mais uma vez e olhou nos olhos do pai dos garotos para dizer: "não vou me meter se você não bater nele de novo!", e o delegado apoiou Natã: "É mesmo Bastião! Se controla, é só até amanhã cedo." , dando a entender que quando Natã fosse embora ele poderia ficar à vontade para educar o filho. O estômago do Rockeiro se comprimiu com força.
Em sua carreira como músico, Natã já tinha vivido diversas cenas de extrema loucura. Experimentara e abandonara drogas e um submundo onde paranoicos e lunáticos falavam sozinhos, comiam o que encontrassem pelo chão, tinham ratos e aranhas como animais de estimação ou mesmo cometiam suicídio a sós e coletivos como se fosse um tipo de esporte macabro. Ainda assim, jamais se sentira tão de ponta cabeça quanto ao assistir aqueles acontecimentos se desenrolarem. Talvez o fato de os loucos do submundo terem seus exteriores refletindo seu interior, ajudasse a entender suas atitudes psicóticas. Eram doentes de mente e alma, e o eram assumidamente, afinal estavam claramente pré-dispostos a cometer alguma insanidade. Mas foi muito mais assustador para ele, assistir à pessoas limpinhas, penteadas, engomadas e sorridentes tratarem crianças como lixo e interagirem como se estivesse tudo certo, tudo bem, obrigado.
Observando tudo de fora mais tarde, Natã conta que sempre odiou "terno e gravata", referindo-se a quem se sente bom quando está nesse "estado de espírito".
"É apenas uma máscara, não uma garantia de caráter!", ele conclui.
A anos não sentia uma dor de cabeça tão forte. Passou o resto da tarde de tocaia, deixando claro que estava vigiando a casa da frente. Vez ou outra via Sebastião espiar discretamente pela janela, mas nada de mais aconteceu até o anoitecer. Encontrara a chave do furgão, estava no bolso de uma calça no chão do banheiro. Guardou o vídeo.
A cena de horror de seis segundos de duração que gravara naquela tarde representava outro conflito de sentimentos: repulsa pela cena e felicidade pela forma como poderia usá-la. Tentou mandar o vídeo para Alexandre, mas por algum motivo ele chegava corrompido para o amigo. Isso não afetou o Dr. Cavalheiro. Ao contrário, ele estava correndo com o processo como podia e ter a garantia de um vídeo era sem dúvidas um salto em seus esforços. Combinaram de no dia seguinte Natã retornar para a cidade e assim que estivessem com a ação e mandato judicial, tornariam à Rua Pedra do Sol no vilarejo de Piltor, e correndo tudo bem, voltariam para casa com Charles, e se dessem um pouco, só um pouquinho de sorte, Adriano iria junto. Mas isso era para a manhã seguinte, quando Natã partisse. Naquele momento, tanto ele e Adriano queriam ver e ouvir Charles, quanto o próprio demonstrava o que o irmão julgava ser ansiedade em seus trejeitos e olhar, o que era uma novidade para ambos.
Tarde da noite, quando só os grilos e o vento na copa das árvores podiam ser ouvidos, Natã ficou com os sentidos em total alerta, sentado na grama do quintal e pela primeira vez desde aquela tarde tensa e angustiante, abriu um sorriso, quando viu as duas pequenas silhuetas sorrateiras na escuridão, saírem do chalé em frente e virem a seu encontro.
Ele abriu o portão e assim que os garotos atravessaram para seu gramado, fechou o trinco e correndo, foi seguido pelos dois, só parando quando chegaram à sala.
-Tem certeza que eles não levantam? –perguntou Natã sussurrando, como se alguém pudesse ouvi-los.
-Minha mãe trabalha o dia todo e chega muito cansada e eles têm televisão e uma "geladeirinha" no quarto. A gente saía pra ver estrelas toda noite antes de você chegar e eles nunca saíram daquele quarto! –Natã ficou mais tranquilo. Fechou a cortina, mostrou a mesa de salgados e lanches para eles e Adriano se empanturrou, mas Charles só tinha olhos para a flauta. Natã foi ligar a aparelhagem e viu o lembrete que deixara para si mesmo na parede, que dizia: "ÍRIS". Lembrou-se de que deveria filmar as íris deles três e mostra-las ampliadas para Charles.
O trabalho, a missão, a caminhada em direção a um objetivo, são ótimos meios para se desvencilhar do que quer que se queira esquecer. De repente os ânimos eram outros e o chalé cor de areia tornara a parecer o melhor lugar no Universo para se estar.
As gravações dessa noite compõe quase oitenta por cento do que se tornou o primeiro álbum de Charles. Se Natã já chorara e petrificara com suas composições monstruosamente complexas e variadas anteriores, a experiência dessa noite foi a que lhe trouxe o primeiro nome artístico que pensou em dar ao habilidoso flautista de oito anos: Charles De Marte. Era engraçado e místico ao mesmo tempo e na época parecera bastante plausível. Hoje é apenas motivo para dar risada. Amém de novo!
Eles assistiram, como sempre maravilhados, Charles "compor para" buracos negros, pântanos, formigueiros e agora a íris deles. Natã ia devaneando e dando nome aos trechos. Foi a primeira vez em que se notou que o trabalho de Charles ia precisar de algum tipo de estudo aplicado, pois não era só composição de música inspirada em alguma coisa. Havia algo mais, mas as pistas estavam invisíveis a olho nu. Era pedir demais encontrar algo, muito além da música, ali e naquele momento. Lembrou-se de que Ayana, a esposa de Danilo, era formada em psicologia e já atendia consultas há quase cinco anos. Com certeza ela contribuiria muito com esse trabalho e sem dúvidas ela ia se interessar. Seria uma aventura descobrir o que se passava na mente de Charles, entender como ele via o mundo. Mal podia esperar para tirar os garotos daquele ambiente estéril em criatividade.
Natã teve o bom senso de filmar toda a sessão com sua câmera "raçuda", que sobrevivera há exposição de uma noite inteira de sereno. Até hoje, a gravação mais importante na vida e arte dele foi a dessa noite. Acima de qualquer apresentação sua gravada anterior ou posteriormente à essa, pois foi a noite em que as impressões de suas íris foram traduzidas em música pelo pequeno gênio.
Depois do que pareceu uma odisseia celestial, Charles começou a sibilar e fraquejar em suas notas. Era o aviso do fim daquela sessão de gravação. Natã deu uma boa olhada em seu material enquanto Adriano ajudava seu irmão a comer. Sem dúvidas havia pelo menos doze horas de gravações de áudio e ao menos cinco de vídeo e mesmo os áudios sem vídeo, estavam marcados com o nome do que Charles estava assistindo na hora em que "criou" a música. Já possuía material de sobra para editar, e aliando isso aos fatos de que tinha em mãos um vídeo que provava os abusos extremos que Charles sofria e que a assistência social já havia faltado em seu compromisso uma vez, tomou a decisão que lhe pareceu mais apropriada.
Natã nunca comentou suas decisões dessa noite específica, nem os fatos acarretados por ela, e nem eu ou qualquer outra pessoa que ousasse pressionar alguém nessa posição, seria tão monstruosa quanto o monstro Sebastião.
-Vou embora essa manhã! –Declarou para Adriano. O garoto congelou e se esforçando para demonstrar força na voz, ele perguntou:
-Vai levar Charles?
-Ainda não, porque seria um sequestro. Mas vou pra cidade, vou entrar na justiça! Consegui gravar o seu pai maltratando o Charles essa tarde. Com esse vídeo e muito empenho na causa, posso conseguir até a sua guarda e em breve eu volto aqui só pra buscar vocês!
Adriano abriu um sincero e largo sorriso ao qual Natã retribuiu com um toque na mão do irmão mais velho do Mártir. Estava olhando os garotos se levantarem do sofá e se encaminharem para a porta de saída quando repentinamente Natã ganhou noção de uma coisa muito óbvia, mas na qual não havia pensado ainda:
-E sua mãe Adriano? Se vier comigo só vai poder ver ela de vez em quando.
-Vou poder ver ela de vez em quando? –Perguntou, mas não deu tempo para Natã responder:
-Tudo bem! Eu só vejo ela de vez em quando. E quando meu pai bate no Charles, ela nem faz nada... Só... Fica lá, fingindo que não vê!
-Entendo... –Disse Natã e olhou para a câmera que ainda estava gravando-os sobre o tripé. Com certeza aquela cena iria para o tribunal na hora de resolver o problema das guardas.
Já com a mão na maçaneta, Adriano se virou e perguntou, no entusiasmo de alguém que se lembrara de algo muito importante:
-Êi, quando você volta? –Natã suspirou.
-Não sei carinha! Em alguns dias, espero eu.
-Não demora moço! A gente não aguenta mais!!
Natã sentiu a garganta fechar por dois motivos: realmente não queria nem imaginar o sofrimento que os garotos passariam enquanto ele estivesse fora. E segundo, somente após ser chamado de "moço", naquela terceira noite, foi que reparou que Adriano sequer sabia seu nome. Naquela zorra toda, esquecera-se até mesmo de se apresentar.
Pensou em seguida no fato de um garoto estar querendo ir morar com um estranho para fugir do próprio pai. Pensou em sua própria história de vida e perguntou-se "o que seria uma família então? Será que laço de sangue tem alguma real importância sobre consideração e sentimento?". Pigarreou e declarou:
-Eu me chamo Natã carinha!! –Olhou os garotos por alguns segundos. Foi então que teve a ideia. Dirigiu-se até a prateleira onde pousara a flauta dentro de seu estojo. Abriu-o e retirou o belo instrumento, entregando-o para Charles e passando o estojo de latão e tampa de vidro para Adriano.
-Eu volto pra buscar meus "três" amigos heim! Cuidem bem um do outro até eu voltar.
Adriano sorriu e para surpresa de Natã, se lançou num abraço ao amigo. Natã não esperava aquilo e um pouco encabulado retribuiu o abraço e fechou os olhos sorrindo e dando palmadas nas costas de Adriano. Mas de repente, ambos se soltaram, com expressões como as de quem acaba de ver um fantasma, quando surgiu no ar a "Canção De Natã", a mesma que Charles tocara quando vira a íris do músico no projetor. Foi um choque! Como ele podia saber que era sua íris? Haveria apenas tocado aleatório?
Natã quis encarar aquilo como a maneira de Charles abraça-lo também. Fingiu que não estava emocionado, como se seu rosto estivesse branco, frio e sério, e não vermelho, sorridente e lacrimoso.
-Vão pra casa! Logo mais a mãe de vocês vai levantar pra trabalhar. Se cuidem!!
-Beleza! –Respondeu Adriano dando um "joia" e após guardar a flauta na caixa, segurou a mão de Charles e foi guiando-o de volta para o chalé do outro lado da rua.
Natã ficou de olho nos dois atravessando a rua e quintal, até sumirem pela porta de entrada do chalé do outro lado da Pedra Do Sol.
De repente se deu um solavanco e como se tivesse adquirido algum poder de super agilidade, ele calçou suas botas e blusão de moletom preto e começou a arrumar seu material dentro do furgão marrom. Tinha muito trabalho a fazer e considerando que os surtos de Sebastião eram diários, tinha pouquíssimo tempo para resolver tudo. Estava pronto para partir assim que o dia clareou. Saiu de casa ao mesmo tempo em que a mãe dos meninos saía para trabalhar. Ele a viu parar na parte de dentro de seu quintal, atrás da grade baixa do portão. Parou o furgão em frente a ela, que não saiu nem voltou, apenas permaneceu ali parada fixando Natã com olhos arregalados. Ele entendeu de onde Charles herdara seus olhos incríveis. Natã baixou o vidro do furgão e disse em tom alto, grave e sério:
-Avisa seu marido que eu volto em poucos dias e se ele tiver batido no menino de novo eu MATO ELE!! Simplesmente isso: ele bate no menino e você vira viúva!!!
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Charles Mártir E O Segredo Do Universo
RandomO Universo é uma caixa de música, pois está construído em proporções equivalentes aos intervalos de oitavas. Néstor Eidler