Convocação

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A tenente Thompson cuidava de nós quase que como uma irmã mais velha. Bullseye tinha aquele ar assustador de veterano de guerra, mas também tinha seus momentos de jovem engraçado como nós.

É óbvio que o momento não era propício para piadas. Éramos cinco (seis, contando com Sal) jovens que viviam às escondidas, longe e sem notícias de suas famílias (ainda mais Sophie e Emanuel), sem saber se voltaríamos a ver a luz do dia em algum momento. Quando brincávamos com algo, era como tentativa de amenizar a atmosfera de pânico e incerteza que pairava sobre nós.

Thompson aparecia pra nós em diversos momentos do dia. Ora pra repor mantimentos, ora pra nos trazer roupas novas, ora pra nos atualizar sobre o que acontecia bem acima de nós. Conforme os dias foram passando, percebíamos que ela descia bastante frustrada. Contava sobre os jovens que ela pensava em ajudar e, quando conseguia pensar num jeito de chegar até ele, os soldados das patrulhas o pegavam. Era quase como se soubessem o que ela ia fazer, mesmo com ela tendo certeza de que seus planos não eram sequer desconfiados por seus colegas de trabalho.

- Bullseye.

- Boa tarde, Emily! - Emanuel abriu a porta educadamente, pegando o capacete de Thompson e tentou puxar assunto enquanto ela tomava a chave das mãos dele e trancava a porta. - Como foi hoje?

- Como você acha que foi? Correria, tiros de efeito moral em direção a multidões, nenhum jovem ajudado por mim, vários pegos por eles. O mesmo de sempre. - Ela disse com uma expressão vazia e jogou umas sacolas em cima da mesa. Emanuel tentou ajudá-la com as bolsas, mas ela recusou a ajuda. - Taí, a janta de vocês.

Nesse dia ela parecia mais estressada que o normal. Enquanto Emanuel se afastava, frustrado, e Sal e Sophie começavam a vasculhar as sacolas em busca de algo que pudessem aproveitar na "cozinha", Emily sentou sozinha na cadeira em frente à escrivaninha. Olhou por alguns segundos para a mesa úmida e mal iluminada, pôs a mão no rosto como quem diz "O que eu estou fazendo?..." e abaixou a cabeça. Maria, que tinha acabado de sair do banho, esboçou uma reação, mas eu a segurei pelas mãos.

- Não, deixa ela. Ela tá de cabeça quente, não vai ser legal.

Sal e Sophie começaram a ajeitar algo para comermos. A energia de frustração que Thompson emanava era tão densa que contagiou todos no cômodo com um silêncio ensurdecedor. Depois de poucos minutos, Maria resolveu ir de encontro a este silêncio. Eu até pensei em conversar, mas achei que não era a pessoa certa para tal.

- Ei. - Maria disse suavemente, tirando os cabelos de Thompson de sua testa e olhando em seu rosto. - Você não precisa carregar o mundo em suas costas. Nós estamos aqui, conversa conosco.

- Eu não preciso conversar com ninguém. Eu sou um soldado. Soldados não se abalam com essas coisas.

Maria engoliu a seco, respirou fundo e se abaixou ao lado de Emily.

- Aqui dentro você não é um soldado, não é um peão. Aqui dentro, desde que você nos colocou aqui, somos uma família, não é pessoal?

Neste momento, Emily levantou a cabeça. Sal e Sophie balançaram a cabeça em sinal afirmativo, Emanuel olhou cabisbaixo, mas também acenou com a cabeça, e eu olhei fixamente nos olhos azuis de Emily. Ela tinha que saber que poderia contar conosco.

- E então, o que me diz? - Maria pergunta, vitoriosa.

- Peço que me desculpem. Eu não digo nada porque eu estou acostumada a isso. Minha entrada no exército não foi das melhores e mais aceitas do mundo. Na verdade, todos que conheci ali dentro tentaram me sabotar de alguma forma. Todos tentavam puxar o meu tapete. - Enquanto ela falava, eu e Maria olhávamos fixamente pra ela. - Eu fui a melhor em quase todos os quesitos: quando eram tarefas individuais, eu me sobressaía. Quando eram tarefas em grupo, eu tomava a liderança e meus liderados conseguiam a vitória. As pessoas me olhavam e era uma divisão de pensamentos. Os abaixo de mim me chamavam de convencida e metida, como se eu não tivesse medo de perder o meu posto. Os acima de mim me chamavam de sortuda e diziam que no primeiro tropeço, iriam me punir severamente, pra que eu aprendesse quem é que manda. Diziam isso entre eles, mas na cara dura, pra que eu escutasse. Então aprendi a não confiar em ninguém, a não pôr nada pra fora, a compartimentalizar tudo. Vocês confiaram e confiam em mim, então não é justo que não confie em vocês.

- Você pode confiar em nós mais do que pensa, Emily. - Eu disse a ela com bastante imponência, e ela sorriu pra nós.

Eu não queria mais que ela carregasse tudo sozinha. Que tomasse conta de nós como se fôssemos crianças. Eu queria lutar. Eu quero lutar. Eu não quero que isso acabe e eu diga que fui protegido por uma tenente que conspirou contra seus superiores corruptos. Eu quero dizer que passei por isso porque lutei junto com uma tenente que conspirou contra tudo e contra todos. Quero que lutemos uns pelos outros, um protegendo o outro. Já tinha pensado nisso por tempo demais, então decidi perguntar a ela naquele momento.

- Emily, você já pensou em nos levar de volta lá pra cima? - Maria, ainda agachada ao lado de Thompson, olhou pra mim com espanto. Eu já havia conversado com ela sobre aquilo. Nós nos tornamos bem próximos naqueles dias.

- Você tá maluco? - Ela respondeu de forma afoita, como se eu tivesse perguntado se ela queria morrer. - Vocês não vão voltar enquanto aquele cenário de guerra não tiver acabado.

- Pra ele acabar, alguém tem que se levantar contra ele.

- Eu já fiz isso! Eu não salvei a vida de vocês?!

- E desde quando uma revolução nasce com cinco jovens dentro de um cômodo sujo? - Disse de forma dura, e Emily ficou sem resposta. - Uma revolução nasce em multidões! Com luta, com batalha, com esforço! Eu cansei de estar aqui o tempo todo, vendo você se dividir em várias pra tomar conta de nós e eu não poder fazer nada pra ajudar!

- E o que você vai fazer, James? Vai virar um soldado da noite pro dia? Uma andorinha só não faz verão!

- E que tal seis andorinhas? - Sal disse num tom desafiador. Quando nos voltamos a ele, ele tinha um sorriso malicioso em seu rosto.

- Você só pode estar de brincadeira. -Emily disse indignada. - Depois de todo o meu esforço pra te trazer pra cá e pra te esconder aqui, você quer realmente entrar nessa dança de novo?

- O garoto tem fibra, Thompson. Você pode não admitir, mas as palavras dele mexeram com todos aqui.

Eu não tinha parado pra ver o que acontecia à minha volta. Quando olhei, Maria, Sophie e Emanuel estavam olhando pra nós dois, e pareciam estar tão revoltados com a situação quanto eu. Tão dispostos a mudar esse quadro quanto eu estava.

- Você me lembra os meus tempos de academia. - Thompson disse baixinho, olhando pro chão. - A mesma iniciativa, a mesma vontade de mudar a situação atual. Dito isso, eu vou acatar ao seu pedido, com uma condição: Se eu sentir que vai dar errado, eu aborto esse projeto imediatamente e vocês cinco - incluindo você, Sal-Him - ficarão aqui embaixo até que tudo se acalme lá em cima. Entendido?

- Sim, tenente. - Disse confiante e sorrindo pra ela.

Algo queimava em meu coração. Algo que nunca havia sentido antes. De repente, a minha vida parecia fazer sentido. Parecia que eu tinha encontrado o que nasci pra fazer. Eu sempre quis manter o curso da naturalidade, e raramente saí da minha zona de conforto, mas dessa vez era diferente. O que queimava em meu peito era a vontade de ajudar Thompson, de sair dali, de reencontrar minha família, de fazer com que todos ali reencontrassem seus lugares e que tudo voltasse ao normal. Pela primeira vez, eu iria lutar com todas as minhas forças e o que mais estivesse disponível. Pela primeira vez, o fogo em meu coração, aquele que eu mantive escondido por tantos anos, iria fazer meu corpo queimar.

Underneath - Abaixo de TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora