Despido, nu.

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Além do cenário acima de nós ser um cenário de guerra, o clima entre nós também era. Não havia tempo para dúvidas, pra pensamentos vacilantes... Era guerra. O mínimo de desvio do nosso alvo geraria uma série de consequências.

Depois que Frank morreu bem na nossa frente, Thompson ficou visivelmente abalada e se sentia culpada. Tiveram madrugadas em que ela chegava lá de cima sem querer falar com ninguém, mas Maria fazia questão de ir consolá-la. Elas ficaram muito amigas, até mesmo porque regulavam a mesma idade.

Para minha surpresa, a mesma coisa que abalou Thompson nos encorajou. Emanuel e Sophie se sensibilizaram quando souberam que Frank era meu amigo, e me prometeram (sem que eu pedisse) que fariam de tudo para vingá-lo. Thompson não gostou da ideia, porém não havia muito o que fazer: estávamos todos determinados.

Sophie se mostrou uma verdadeira estrategista. Enquanto Thompson estava fora, analisava os mapas que eram trazidos de lá de cima, feitos à mão, e os melhorava no nosso cubículo no subsolo. Formava planos cada vez mais concisos, tendo pouquíssimos tropeços e inúmeros progressos. Sabia o nome de todas as "gangues" que haviam sido formadas e que haviam sido descobertas, sua participação, seus territórios e quem as encabeçava. Tinha fichas organizadas por ordem alfabética, e toda e qualquer dúvida era tirada com ela.

Emanuel, sendo completamente ignorado por Thompson, resolveu ter aulas de mira com Sal pra ver se a impressionava. Todos os dias, Sal o ensinava aquele truque do lápis, e dizia que quando ele conseguisse acertar uma uva no ar com aquele mesmo lápis, considerando o ambiente, o peso da uva (o alvo) e o peso do lápis (a arma e seu projétil), ele estaria pronto pra acertar todo e qualquer alvo que passasse em sua frente, mas que não deveria cometer o mesmo erro que Sal cometeu: o de não prestar atenção nas coisas ao seu redor. Então, enquanto Emanuel tentava acertar o alvo na parede, bolinhas de papel, em sua direção e ao seu redor, serviam de distração. Trabalhávamos com o que tínhamos , e os momentos nos quais eles dois estavam treinando eram cômicos de se ver.

Por ser a mais velha e a mais próxima de Emily, Maria, automaticamente e sem que ninguém fosse contrário, virou nossa supervisora (ainda que Sal também fizesse isso) e Thompson a encarregou de nos impor e lembrar de nossos limites. Quando via que Sophie estava passando tempo demais na escrivaninha, sem interagir, sem comer, sem tomar banho..., a tirava de lá. Se os treinos de Sal estavam abusando demais da capacidade de Emanuel, ela os colocava pra descansar. Se Thompson queria sair sem comer, ou dizia que não ia comer na superfície, ela a travava. Ela virou a segunda mandona da resistência (porque a primeira era Thompson).

E eu, bom, eu fazia de tudo um pouco. Eu treinava com Sal e Emanuel, eu olhava os esquemas e os arquivos preparados por Sophie, eu ajudava Maria com os horários de descanso de todo mundo.

A única coisa que não havia mudado era a forma que dormíamos. Thompson dormia na superfície, em seu alojamento, com os outros militares. Sal, em sua caminha nem um pouco confortável, que tinha no currículo o óbito de Frank. Eu, Maria, Sophie e Emanuel continuávamos dormindo juntos no chão. Sophie e Emanuel com o mesmo sono pesado de sempre.

Eu e Maria dormíamos toda noite da mesma forma, com ela deitada em meu peito e com meus braços ao seu redor acolhendo-a, mas não tínhamos falado ainda sobre o que havia acontecido pouco antes de Frank aparecer. Sempre que o assunto surgia, alguma coisa acontecia e nos interrompia ou nos impedia de falar. Já haviam passado dez dias desde que Frank havia morrido e eu decidi puxar o assunto numa noite dessas em que Sophie e Emanuel estavam roncando ao nosso lado e nós, logicamente, não conseguíamos dormir pelo som de dois tratores somados aos sons de tiros, gritos e batidas que ouvíamos vir das ruas e ecoar pelos corredores do lado de fora.

— Ou, tá acordada? — Perguntei cochichando.

— Tô, tô sim... Com esses dois aqui do lado não dá pra dormir, né... Mas tô bem confortável então não quis sair da posição... — Ela respondeu meio sonolenta, já que estávamos no meio da madrugada.

— Eu quero te perguntar uma coisa.

— Diz, Bond.... — Ela disse meio que bocejando.

— Na noite em que Thompson entrou correndo com Frank, o que estávamos quase fazendo antes... Era aquilo mesmo?

Ela ajeitou o corpo pra me olhar. Eu estava deitado com a barriga pra cima, e ela tinha posto uma perna entre as minhas e tinha a cabeça colocada sobre meu peito. Quando levantou, se apoiou com um dos cotovelos no nosso "colchão" feito de lençóis, chegou o quadril e o peito mais pra perto, levantou a cabeça e me olhou bem fundo nos olhos. Ela parecia envergonhada, mas também parecia sentir que precisava falar sobre aquele momento.

— Olha, me desculpa. Eu tava vulnerável, com medo e você me acolheu como ninguém nunca tinha feito.

"Não estou reclamando do que fez, só quero saber o porquê", pensei. Ela continuou:

— O fato de termos nos encontrado na fila, depois dentro da sala, termos vindo pra cá juntos e estarmos dormindo um ao lado do outro... Tudo isso colaborou pra que eu me aproximasse de você, contasse minha vida pra você nesses últimos três meses. Eu me mostrei pra você mais do que mostrei pra qualquer outra pessoa, perto de você eu me sinto nua.

— Nua?! — Não pude conter o constrangimento.

— Sim... Eu não tenho segredos contigo. Eu não tenho o que esconder e, se tivesse, eu não teria como esconder porque você conhece cada canto do meu ser, cada aresta, cada curva mal dada que eu já dei um dia...

— ...assim como você comigo. — A interrompi. Não podia mais ouvir nenhuma palavra dela sem me manifestar. Minha voz, de firme, parecia suave, até mesmo da forma que eu a escutava. — Você sabe dos meus erros, do meu passado, do que eu queria pro meu futuro e de como quero lutar pra tê-lo de volta... Pensando por esse lado, eu também me sinto sem receios contigo, sem barreiras, também me sinto... nu.

Eu senti seu peito esquentar sobre o meu, e meu coração voltou a palpitar. Me pergunto o que essa garota tem que, em meio a um cenário de guerra, faz com que eu não sinta medo, não sinta receio, não sinta angústia... Naquele momento, eu só queria sentir seu corpo chegar mais perto.

Ela continuou a olhar em meus olhos e a se aproximar. A cada movimento dela, os dois suspiravam, como se implorassem um pelo outro. Uma conexão mais que instantânea, até porque nossas bocas ainda não haviam se encostado direito antes, mas que sentíamos de uma forma tão intensa que o ar parecia denso, difícil de respirar. Tinha toda uma atmosfera, mas que só envolvia a nós dois e nos jogava um na direção do outro.

Nossas bocas se encostaram e, em meu peito, era como se tivessem explodido algo. Não algo, mas "algos". Eu podia sentir os estouros, as explosões, e a sensação era maravilhosa. Trouxe minha mão até sua cintura e vim devagar da cintura até suas costas, passeei por ali até seu cabelo e trouxe lentamente até chegar em sua bochecha. Na mesma intensidade, sua mão veio do meu ombro pro meu peito e eu sentia se fossem como águas bem leves, me acariciando e voltando pra seu curso natural.

Enquanto nos beijávamos, o que acontecia era alheio. O risco de morte que corríamos parecia coisa pequena. O antes, o depois.... Nada era importante. O que importava era aquele momento. Era o "agora".

— Nossa.... — Ela suspirou quando nos libertamos um da boca do outro. — Eu nunca tive algo tão intenso com alguém em toda a minha vida.....

— Eu também não.... Mas será que...

Ela me interrompeu com outro beijo, tão intenso quanto o primeiro. Naquele momento, eu sabia que, mesmo que não quisesse, iria protegê-la de qualquer mal. Naquele momento eu entendi que, seja lá qual fosse o meu futuro, eu queria que ela estivesse nele. Eu queria estar no futuro dela seja lá que rumo ele tomasse. Nós iríamos lutar lado a lado, pelos nossos amigos que ali estavam e por suas histórias, mas, a partir daquele momento, lutaríamos também um pelo outro. Lutaríamos pelo nosso direito de estarmos juntos.

Underneath - Abaixo de TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora