Não é um bom momento...

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Nos dias que se passaram, Emily começou a nos contar mais do que sabia que estava acontecendo. Ela sabia que os jovens que não se entregaram pacificamente e foram posteriormente pegos estavam sendo torturados, com o intuito de entregarem esconderijos, lugares seguros, nomes de líderes. Contou que sabia que não éramos a única resistência, mas que éramos os únicos que não tinham se manifestado publicamente, seja com atentados, seja com afrontas verbais pichadas, seja com pessoas aparecendo mortas de forma suspeita, com frases de afronta a algumas dessas "gangues", como era passado à sociedade.

A pergunta que fiz dias atrás foi respondida: pra minha mãe e minha família, assim como as famílias de todos ali, nós estávamos mortos ou tínhamos sido dados como desaparecidos, mortes ou desaparecimentos esses que devem ter sido facilmente atribuídos a uma dessas gangues.

Isso só tornava mais perigosa a ideia de nos transformarmos efetivamente em uma resistência. Teríamos que agir na surdina, no silêncio, no oculto. Com Thompson, poderíamos tentar agir de dentro para fora, mas ela não conseguia confiar em ninguém. Teríamos que ser sutis.

Enquanto estudávamos as maneiras, analisávamos todos os planos, e jogávamos fora a maioria por irmos de encontro a uma barreira, uma onda de proximidade se formou naquele cômodo. Mesmo dormindo juntos, não éramos tão próximos, mas a partir do momento que começamos a interagir de verdade, certas intimidades vieram à tona.

Emanuel estava nitidamente apaixonado por Thompson. Ele não falava nada com ninguém, mas toda vez que ela aparecia, que voltava para nós, com informação, atualizações de como a superfície estava e comida, ele se encontrava num misto de alívio e de entrega, como se quisesse que Thompson o notasse de qualquer maneira. Ela não dava muita atenção, é claro, até porque estava focada em nos proteger e nos ensinar a estar lá em cima sem sermos pegos.

Sophie se mostrou não só tímida, mas focada. Ela não tirava os olhos dos esquemas que Thompson trazia para nós, e sempre que ela voltava, Sophie estava com um plano novo na ponta da língua. Todos eram bem elaborados, mas falhavam em certo ponto e Emily reprovava. Sophie retornava à escrivaninha e tentava articular outro plano, ou corrigir o erro do anterior.

Sal era o único que permanecia o mesmo. Só falava e interagia quando Thompson aparecia, mas ele sempre esteve sozinho neste cômodo, não é de se estranhar que não seja muito comunicativo.

Maria estava estranha. Pelo que entendi dela, ela sempre foi falante, mas comigo era mais. Ela contava sobre seus pais, fazia piadas com nossa situação, quando estava triste ou com saudade deles e dos que ficaram lá em cima, corria pra conversar comigo. Eu não sabia como reagir àquilo, mas aos pouquinhos fui me acostumando a fazer o mesmo. Ficamos íntimos um do outro, um conhecia cada passo que o outro havia dado antes, podendo assim prever o próximo a ser dado. Lógico, o fato de dormirmos juntos toda noite ajudava bastante nessa tal intimidade.

Em uma noite, a coisa ficou estranha. Maria dormia em meu peito, mas foi uma péssima noite para todos nós. Alguma coisa séria acontecia na superfície. Explosões, tiros, gritos. O barulho das tropas a cavalo. O som ecoava pelos corredores do lado de fora e passava por baixo da porta de aço que nos protegia e não nos deixava dormir em paz. E, por "nós", eu quis dizer eu e Maria, já que Sal, Sophie e Emanuel dormiam feito pedras.

Senti o corpo de Maria se mexer e um soluço escapar. Eu estava tentando tão forte me concentrar para dormir que não percebi que ela havia começado a chorar.

— Ei, o que houve? — perguntei, passando a mão em seu rosto e enxugando algumas lágrimas.

— Não é nada, Bond. — Ela respondeu, tirando minha mão de seu rosto. — Vai, vira pro outro lado que eu me acalmo sozinha.

Ela levantou e foi até o banheiro e, por algum motivo, eu fui atrás dela. A segurei pela mão e ela não virou pra mim, mas parou de andar.

— Conversa comigo. Sabe que pode me contar o que for.

— Você sabe que eu não gosto de me demonstrar vulnerável.... Eu sempre me virei...

—... sozinha. — falei junto com ela. — Mas agora não precisa ser assim.

A puxei pela mão e a trouxe até as cadeiras onde elaborávamos os planos com Sophie, Sal e Thompson. Sentei na cadeira à sua frente, segurei sua mão e esperei que ela começasse a falar. Ela ainda se recusava.

— Vai, fala! Eu tô aqui pra você.

— Não, não é nada. Eu só quero dormir e esse barulho não me deixa dormir!!

Ela ameaçou socar a mesa da escrivaninha, mas eu a impedi e apontei para os que estavam dormindo.

— Se você não quer que te vejam assim, melhor não acordá-los, né?

Ela assentiu com a cabeça, mas permaneceu calada.

— "El cuarto de Tula.... le cogió candela...." — Comecei a cantarolar pra ela, na tentativa de fazê-la falar.

— "Se quedó dormida y no apagó la vela....." — Ela continuou com um sorriso bobo e levantou a cabeça.

— Agora sim, é a guria com quem tenho passado todos esses dias. Me diz, o que houve?

— Eu tô com medo, Bond. — Sua aparência era de alguém que estava bem frustrada. — Não vou ser orgulhosa ou prepotente de dizer que nunca tive medo de nada, porque seria mentira. Mas em todas as vezes em que eu estava com medo, minha mãe esteve comigo. — Ela parou para passar a mão nos olhos e continuou. — Independente do que acontecia, da discriminação que sofríamos, das agressões de meu pai nela, dos dias em que ele chegava bêbado e descontava em nós duas... Independente da gravidade da situação, ela estava comigo. E agora eu não sei nem se ela está viva!

Meu semblante foi ao chão. Eu sabia que ela tinha sido agredida pelo pai, eu sabia que o casamento deles não era dos melhores, eu sabia que eles tinham sofrido discriminação. A minha vida, perto da dela, era um sonho. Ou, ironicamente falando, uma utopia. Ela escondeu o rosto nas mãos e voltou a chorar e eu não pude fazer nada senão abraçá-la na tentativa (frustrada) de acalmá-la.

— Vai tudo ficar bem, ok? A Thompson vai nos orientar, o Sal vai nos resguardar, nós vamos subir e fazer uma bagunça com aqueles militares, e todos voltaremos às nossas vidas. Eu fiz essa promessa a mim mesmo e hoje eu faço a mesma promessa a você. Combinado?

— Combinado, Bond.

Ela olhou em meus olhos com aqueles olhos verdes e senti meu peito queimar. Não era só a vontade de me proteger e voltar à minha família, mas também a vontade de proteger a ela e fazê-la voltar pra sua família.

— Eu não tinha reparado que seus olhos castanhos eram tão bonitos de pertinho... — Ela disse baixinho enquanto chegava mais perto...

— Eu não vou nem dizer nada sobre esses seus olhos verdes....

Algo em mim ardia como nunca tinha acontecido. Minhas mãos suavam, meu peito palpitava e eu não conseguia ficar longe dela, ou parar de me aproximar. Era como se ela tivesse um imã acoplado que me atraía cada vez mais.

— Depois desse tempo todo.... — Ela chegava mais perto.... —... você não vai me dizer.... — nossas bocas estavam quase se encostando.... —... o seu nome todo?....

— É James....

Nossas bocas mal se encostaram e fomos interrompidos por batidas desesperadas na porta de aço, e gritos de "bullseye". Era Thompson!

Sal levantou num pulo, seguido de Emanuel, e Sophie acordou como quem acorda de um sono pesado, sem saber muito bem o que estava acontecendo.

Quando Sal abriu a porta, viu uma Emily ensanguentada e carregando um outro jovem, com roupas sujas, amarrotadas e com um buraco enorme em sua perna esquerda. Ele estava desacordado e pálido, logo sabíamos que ele não tinha muito tempo. Levantamos, ajudamos Emily a colocá-lo na cama de Sal e ele foi pegar os primeiros socorros.

Só então eu fui olhar pro rosto do rapaz. Estava sujo de poeira e sangue, com roupas que não faziam o estilo dele, mas eu reconheceria aquele rosto em qualquer lugar.

— Franklin?!

Underneath - Abaixo de TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora