Capítulo 4 - Esconderijo

33 1 0
                                    

Enquanto as velas são acesas e espalhadas pela sala, dedos finos passeiam por páginas velhas e amareladas, virando-as com cuidado para que não se desprendam da encadernação. Quando a quadragésima terceira página é encontrada, Agnes se dá por satisfeita e estende o livro pela mesa da sala. Lorena espia as palavras ali escritas, até sua líder lhe estender a mão.

As seis mulheres de robes pretos agora se encaram em duas filas alinhadas frente a frente. De um lado, Agnes, Cornélia e Maria criam uma conexão com a fila de Lorena, Anna e Helena. Elas dão as mãos formando uma espécie de retângulo.

- A primeira fase é a mais importante. – Agne diz, suavemente. – Limpem a mente. Nada importa agora. Concentrem-se na conexão entre as mãos e os olhares. Nenhum outro pensamento é mais importante agora do que a vivência do momento presente. Vamos respirar fundo três vezes.

Os pulmões se enchem de ar e o expiram lentamente após algum tempo.

- Quando eu contar até três, nós vamos fechar os olhos e mentalizar a imagem de Sekhmet. – Agnes permite que todas respirem fundo mais uma vez antes da imersão total no subconsciente, mantendo seus olhos fixos nos de Lorena, torcendo para que tudo dê certo. – Um... Dois... Três!

Conforme instruído, Lorena fecha os olhos, mentalizando a imagem conhecida da mulher com máscara de leão.

---/---

O restaurante oriental continua em plena penumbra, assim como toda a rua larga. Nenhum dos clientes ousou se aventurar pelo asfalto escuro e molhado, embora consideráveis minutos já tenham se passado. O celular de Teresa já não dá sinais de vida, fazendo sua preocupação transbordar. Fabrício permanece tranquilo, explicando curiosidades sobre a física quântica para Olívia. Maurício permanece entretido em seu celular.

- Ela estuda os elementos menores do que os átomos. A dualidade onda-partícula é basicamente a suposição de que uma partícula pode agir em uma situação simultaneamente... – Teresa desliga-se novamente da voz do marido para prestar atenção à expressão preocupada de Mauricio.

- Está falando com o Caio? – Ela pergunta, enquanto Olívia continua imersa na "teoria dos vários mundos".

- Ele não me responde. Já tentei ligar por chamada de vídeo também, mas nada...

- Você sabe o endereço? Talvez devêssemos buscá-los.

- Eu tenho salvo no meu Waze. – Ele espia o lado de fora. – Parece que o apagão não está só nesta rua. Será que não é arriscado sair assim?

- Sair no meio do blecaute? – Fabrício ouve o fim da conversa da esposa com o amigo. – Nem pensar! Perigoso demais!

- E vamos deixar os meninos lá a noite toda? – Teresa aumenta o tom de voz.

- Podemos pedir pra eles pegarem um Uber... – Olívia diz, tentando acalmar a situação. - O Gabriel pode ficar lá em casa até chegarmos, assim eles não ficam sozinhos.

- Isso se você conseguir falar com algum deles... – Maurício continua digitando, sem qualquer retorno.

---/---

- Urucum, vermelho como o vestido da deusa. – Apreensiva, Lorena acrescenta o pó separado anteriormente à vasilha de turmalinas negras sob o olhar atento das outras cinco mulheres. - Cúrcuma para o ouro de sua máscara. – Utilizando um fino pedaço de madeira, semelhante a um hashi, ela mistura os dois pigmentos, que ganham um chamativo tom alaranjado. – Por fim, tinta de lula, preta como seus olhos. – O liquido une os elementos anteriores, transformando tudo em uma grande massa escura e densa.

Agnes se aproxima, tomando a vasilha nas mãos. Ela examina seu conteúdo, primeiro a aparência, depois o aroma e por último o sabor. Um sorriso leve em seu rosto demonstra aprovação.

- Agora... – De cima da mesa, ela levanta um pedaço de papel rasgado. - Os jovens devem estar em fila. - Ela direciona o olhar da lista em suas mãos para os adolescentes ainda adormecidos pelo chão da sala.

Prontamente, Lorena, Anna, Cornélia, Maria e Helena arrastam os corpos inertes, colocando-os deitados em uma fila que ocupa quase toda a extensão da sala. Agnes confere cada nome, certificando-se da posição exata na qual eles devem estar. Em um sobressalto, seus olhos se arregalam e se direcionam, furiosos, para Lorena.

- Está faltando um!

---/---

Samuel, agachado atrás de um dos armários da cozinha, levanta e desce o peito conforme tenta respirar fundo sem fazer barulho. Ele consegue ter um vislumbre de Lorena misturando ingredientes em um recipiente negro. Os últimos vinte minutos, após seu despertar, foram de profundo desespero e agonia, já que se manteve imóvel, esperando as senhoras que ocupam a sala ficarem de costas para ele. Assim que elas fecharam os olhos, poucos, largos e silenciosos passos o levaram até a cozinha, onde agora ele tenta planejar uma fuga e um meio de salvar seus amigos.

Ele observa Lorena e as outras estranhas mulheres mais uma vez, antes de passar os olhos pelo resto da cozinha. Uma porta lateral parece ser a solução, mesmo que ele não conheça seu interior. Samuel tira os tênis para amenizar o ruído dos passos. Mais três respiradas são necessárias para que ele se levante, siga até a porta e tente fazer a mão trêmula girar a maçaneta vagarosamente, para que o barulho do trinco não denuncie sua localização.

A promissora porta se revela nada mais do que uma simples despensa pouco abastecida. Os frascos e pacotes de alimentos produzem um cheiro indecifrável, que acaba por enjoar seu estômago. Ele aproveita o momento para observar seu celular, ainda sem sinal e quase sem bateria.

Teria que arranjar outra ideia. Ele volta para a cozinha, concentrando sua audição até a sala.

- E por fim, tinta de lula, preta como seus olhos. – diz a voz de Lorena, ao longe.

Uma geladeira, uma pia, o armário onde ele se escondia e uma mesa, alta e larga, com algumas cadeiras. Eram esses os objetos dos quais sua salvação dependia. Acima da pia, através de uma pequena e estreita janela, a luz da Lua reflete os pingos da chuva lá fora.

Ele não tinha outra opção.

O som dos corpos sendo arrastados se inicia ao mesmo tempo em que ele abre o vidro da janela. Alguns pingos de chuva pulam para dentro da casa enquanto ele calcula mentalmente a possibilidade da fuga e seu rosto se converte em uma expressão aflita quando Samuel percebe ser impossível escapar por ali.

- Está faltando um! – O sobressalto de Agnes acelera o coração do garoto. Ele desiste da janela e, assim que percebe a movimentação das outras mulheres pela casa, corre para o único local que pode lhe servir como um mínimo esconderijo.

Samuel utiliza o trinco de metal para se trancar na despensa. As vozes transformam-se em murmúrios quando ultrapassam a madeira da porta. O único som reconhecível é o dos passos que entram na cozinha, obrigando o garoto a se encolher em frente à prateleira mais distante da porta.

A mulher de identidade ainda desconhecida vasculha o cômodo, abrindo armários e bagunçando louças e utensílios, com pressa e agressividade. A intensidade dos movimentos muda bruscamente, e os passos passam a ser mais lentos. Samuel sua frio diante a possibilidade de ser descoberto, mas logo ouve o rangido da janela que ele deixara aberta. Uma voz, provavelmente de uma das mulheres que o menino ainda não conhece, ecoa pelo primeiro andar da casa.

- Ele escapou! 

A Última VelaOnde histórias criam vida. Descubra agora