Insone

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Acordei às quatro horas e não houve o que me fizesse dormir de novo.

O quarto estava escuro, fazia um pouco de frio e a chuva batia na janela, no terceiro andar: nem mesmo com esse convite consegui pregar os olhos. Levantei-me, usei uma camiseta qualquer, fui até a sacada e acendi um cigarro.

Senti calafrios embora não ventasse muito. Da varanda pude ver dois táxis passando logo abaixo, um de cada lado da avenida de três faixas. Para onde estavam indo? Quis saber. Para onde eu iria?

Fazia poucos meses que ela tinha me deixado. Uns cinco ou seis, talvez, não sei ao certo: não quis guardar a data para não ansiar sua chegada todos os anos pelo resto de minha vida.

Havia muito tempo eu não sabia o que era acordar sozinho, na cama, no meio da madrugada. Ela esteve sempre lá: mesmo quando eu não merecia, mesmo quando brigávamos ou discutíamos... ela estava lá.

Hoje sei que é melhor para ela estar sozinha ou com alguém que não seja eu. Nunca pude ser o homem que ela merece, não importa o quanto tivesse tentado. Soube que estaria sozinho no fim e essa morbidez, bem provavelmente, me sentenciou à solidão que agora me engolia.

Eu queria estar sozinho com ela, para sempre, e ela sabia disso. Sabia também que eu não poderia ter filhos e ainda assim esteve ao meu lado todo esse tempo. Ela, todavia, merecia ter um filho, ou uma filha, ou muitos: quero dizer, um filho merecia tê-la como mãe, ou uma filha, ou muitos.

Sempre foi generosa, boa e forte. Amava-me mesmo que eu não entendesse o porquê e eu a amava por isso e por todo o resto. Amava-a por ser quem era e continuo a amá-la ainda hoje. Sei que ela não me despreza e isso reduz um pouco o peso deste fardo amargo que carrego.

Da última vez em que a vi ela me deu um beijo tão apaixonado quanto o nosso primeiro e me abraçou tão forte que pensei que nossos corpos nunca mais pudessem se separar. As malas já estavam em seu carro e este, cinco minutos depois, eu não sei onde estaria.

Também chovia naquele dia. Creio que as perdas e as despedidas devam ser molhadas, ninguém fica triste sob o Sol ou, pelo menos, não deveria...

Eu, contudo, tenho ficado.

Ou, melhor: triste não é a palavra exata para descrever o que sinto... estou feliz por ela, sei que ela suportou muito mais do que qualquer pessoa deveria suportar na vida e ainda assim não tem mágoas de mim... ela é uma pessoa maravilhosa, será uma mãe tão boa quanto uma mãe deve ser.

Percebo que o cigarro se queimou até a metade e eu sequer dei um trago: odeio desperdícios, fiz a metade final valer a pena. Permaneci ali, de pé, na varanda, de cueca e camiseta, por não sei quanto tempo.

Sorri, ou pelo menos tentei: se pudesse me ver apostaria que foi um esgar de sono, mas jamais poderei ter certeza...

Aurora fitava-me com seus olhos amarelos de sono: bocejou, sua língua felina enrolou-se e eu fiz um cafuné em sua cabeça. Espreguiçou-se, acomodou-se e dormiu como se nada no mundo pudesse preocupá-la... e não podia.

Como eu a invejava.

Eu tinha de reaprender muita coisa, principalmente a não ser amargo com a vida: fazer isso, por outro lado, eram outros quinhentos.

Mas se eu tinha de começar de alguma forma, que fosse passando um café. 



Revisão publicada em 25/04/2020.

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