Parte I

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Connecticut
27 de outubro de 2017

O relógio marcava quase meia-noite e meia. Foi somente a essa hora, infelizmente para Alfonso, que os carros diminuíram o zumbido pela rua, as vozes e as risadas das pessoas pela calçada cessaram, o ruído característico da noite parecia domado. Mas a chuva torrencial ainda batia insistente em sua janela. Ele, porém, apreciava aquele som.

Há algumas semanas alugara aquele sobrado em Connecticut apenas para ter privacidade e para conseguir realizar seu trabalho com êxito. Não estava sendo necessariamente como imaginou que seria. Entretanto qualquer coisa - qualquer coisa mesmo - era mais cômodo que seu apartamento próximo ao Central Park. Sua família era agitada demais para seu próprio conforto, e seu quarto vivia sendo constantemente invadido, com bastante inconveniência, pelos pais, irmãos, primos e tios. Uma algazarra que ele nunca conseguiu conciliar com seus roteiros.

Agora, sozinho em Connecticut, fechava as janelas de vidro, deixando as cortinas abertas para que a lua iluminasse sua sala com a ajuda da luminária sobre a mesa. Tudo o que tinha ao alcance das mãos era ela, seu notebook, uns papéis, uma nova xícara de café exalando fumaça quente e uma caneta que usava para coçar a cabeça e depois recolocá-la de volta em seu lugar, atrás da orelha direita.

Concentrado, leu as últimas linhas do seu novo projeto. Na noite passada, parecia ter sido um pouco mais fácil...

Sua nova peça tratava sobre um homem solitário e rude lidando e tentando fugir da súbita chegada de uma arrebatadora paixão. Sua mãe dizia que, de certa forma, aquele era Alfonso: sozinho e turrão, descartando mulheres ao vento, como num jogo de baralho, respaldado apenas pela desculpa deslavada de não ter tempo para algo que não fosse seu trabalho. Até suas horas de diversão ficavam pra trás ali, no teatro; aquelas atrizes juvenis e voluptuosas nunca conheceram sequer o calor da fibra do banco do seu carro.

Depois a lembrança de sua mãe, uma simpática mulher de rosto iluminado, o fez rir enquanto balançava a cabeça em negação. Tal fato vinha acontecendo muito pouco ultimamente. Não que Alfonso reparasse ou lamentasse, mas das raras vezes em que sorria, não era nem mesmo pela companhia de alguém, exceto da sua televisão ou das suas remotas lembranças alegres.

Ele esfregou as mãos. Digitou algumas frases. Apagou outras. Reescreveu. Testou sua última cena, de pé, caminhando pela sala e atuando consigo mesmo. Pensou que cairia bem mudar a estratégia. Sentia seu protagonista mais agressivo do que realmente queria. As vezes lhe ocorria que seus personagens eram tão fortes a ponto de fugir de seu controle. E isso era um bom sinal.

Alfonso sentou-se novamente e estava pronto para começar a próxima cena quando a campainha o fez se sobressaltar. Ele praguejou, encarando a porta. Eram duas horas da manhã. Seria possível que as pessoas daquele lugar não tivessem sequer consciência disso?

Decidido a ignorar, Alfonso esperou. Algum moleque sem pai e mãe deveria estar na rua ainda a essa hora.

Mas depois de apenas poucos segundos o som insistente da campainha voltou a soar.

- Merda!

Esbravejando, foi até a porta e, visualizando a rua através do olho mágico, viu que alguém encolhido em seus próprios braços - provavelmente para se proteger dos pingos fortes da chuva  se afastava rapidamente, sem olhar para trás. O engraçadinho certamente ouviria algumas poucas e boas por interromper seu trabalho.

Poncho escancarou a porta num rompante e uma rajada de vento gelado bateu contra seu corpo, fazendo-o estreitar os olhos. Estava prestes a caminhar com rapidez até o infeliz, quando algo, ao seu primeiro passo, o fez parar.

Um choro estridente.

Ele desviou os olhos para seus próprios pés e então reconheceu o emissor daquela barulheira.

Um bebê. Minúsculo e agitado. E no qual ele havia pisado sem nenhuma intenção.

Poncho ergueu a cabeça num solavanco, procurando pelo responsável, ou simplesmente alguém que pudesse assegurá-lo de que aquilo era uma brincadeira ou, no mínimo, uma alucinação das piores possíveis. Desesperou-se em maior grau ao ver que já não havia mais ninguém ali.

Ele levou as duas mãos a cabeça e se viu paralisar, sem reação. A única coisa na qual conseguia pensar era que aquilo não podia estar acontecendo. Não como ele via em roteiros de filmes estúpidos que inexplicavelmente batiam recordes de bilheteria. Roteiros que ele jamais escreveria, tampouco viveria pessoalmente. Já havia escutado casos reais de crianças abandonadas desta mesma forma, sabia mais ou menos a conduta que deveria tomar, mas não pretendia, honestamente, aborrecer-se com mais uma responsabilidade.

Ele olhou para os lados, todos eles, procurando por uma pessoa sequer. Mas nem mesmo suas vizinhas fofoqueiras de plantão pareciam dispostas a afastar as cortinas para bisbilhotar algum novo evento.

- Só pode ser uma piada - murmurou, mirando o bebê que sacudia os pequenos braços no ar, chorando a plenos pulmões.

Ainda assim, vendo aquela coisa rosada demonstrar - da única maneira que podia - sua dor, a única reação de Alfonso foi fechar a porta, deixando-a ali. Talvez alguém passasse pela rua ainda naquela madrugada e a recolhesse. Talvez aquele choro insuportável pudesse acordar a vizinhança e fazer com que outra pessoa tomasse conta disso. Se ninguém passasse pela madrugada, pela manhã cedo com certeza passariam e veriam o bebê.

Mas estava tão frio. Ele morreria ali fora dentro de algumas horas.

Alfonso praguejou, vendo que os minutos se passavam sem que ninguém se manifestasse. Então pensou que talvez pudesse acrescentar umas mantas e levar o bebê a porta de outra pessoa... Para ele não importava onde ele fosse parar desde que estivesse longe de sua casa. Não era obrigação sua, Alfonso sabia disso. Não tinha razão nenhuma para ser, ninguém poderia responsabilizá-lo por isso. Então por que diabos aquela criança fora deixada ali? Por que justo para ele? E por qual motivo insano ele a estava pegando nos braços?!

:: EM BREVE ::

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