Parte II - 2

1K 77 7
                                    

- Vamos, quinquilharia! - ela gritava - Droga de carro! Você é uma porcaria!

Depois encostou as costas no automóvel e fez um impulso com os pés até que ele se deslocasse alguns poucos metros. A mulher acabou por se desequilibrar, caindo com as costas no chão. Como consequência do feito estavam: um salto quebrado e um cotovelo avermelhado e ardido.

Alfonso balançou a cabeça negativamente.

- Oh, meu Deus, que coisa. Maldita tralha! - ela levantou-se rapidamente e atirou o sapato para bem longe.

Poncho riu, ainda observando.

A mulher sentou no chão, encostando-se ao pneu e abraçando as próprias pernas numa tentativa inútil de se aquecer. De repente tirou do bolso de seu sobretudo uma barra de chocolate tão enorme quanto os seus saltos, outrora inteiros, e a enfiou na boca com afobação.

Alfonso ergueu uma sobrancelha. Ela não sabia que poderia ter uma crise de hipotermia se continuasse ali?

- As pessoas dessa cidade são realmente estúpidas assim? - ele se perguntou, fechando a cortina. Não se importava com a resposta.

Sentou-se no sofá e pensou em abrir uma nova lata de cerveja para assistir a reprise do jogo dos Yankees que havia perdido mais cedo, mas desistiu quando a simples ideia o fez arrepiar de frio. A temperatura dentro de casa estava baixando rapidamente, a calefação logo não suportaria. Ele nem queria pensar em como deveria estar lá fora.

Menos de dois segundos depois, irritado, Alfonso foi até a janela outra vez. A mulher estava no mesmo local, potencialmente mais encolhida e mais trêmula. Ela tentava, de maneira frustrada, se comunicar com alguém através do celular. Até onde ele sabia, as redes de telefonia móvel estavam apresentando problemas, mas a mulher insistia, distribuindo tapas no aparelho por cada vez que a ligação não completava.

Ele grunhiu, dessa vez. Algum dia esperava ser recompensado pelo que iria fazer.

Calçou os coturnos, buscou um guarda-chuva, abriu a porta e foi até ela.

- Todo mundo acha que devemos favores aos amigos. Ah, claro, mas devemos. São nossos amigos e amigos são amigos - ela resmungava com a boca cheia de chocolate, conversando consigo mesma - Mas acho que meus amigos não estão necessariamente preocupados comigo. Até parece! Aquele Rodrigo... Nossa, que homem insuportável! E agora eu estou aqui! Com um carro quebrado, correndo o risco de morrer congelada isolada da humanidade! - e de repente ela parou, um tanto sobressaltada, erguendo os olhos a um homem parado bem a sua frente.

Por baixo daquele guarda chuva não se enxergava muito, mas o rosto sério e anguloso ainda era visível.  Ele era um pouco sombrio, ela pensou. E a mão grande estendida em sua direção parecia capaz de se fechar, até mesmo, ao redor de seu pescoço.

Bom, o medo era compreensível. Ela não sabia ao certo qual o objetivo daquele homem com aquela atitude, já que ele não sorria, nem se movia, sequer dizia alguma palavra. Não sabia se estava pedindo um pouco do seu chocolate, ou dinheiro, ou se tinha a intenção de ajudá-la a levantar.

- Está um pouco frio, não acha? - ele disse, finalmente, mas não tinha um semblante de generosidade e sim de tédio e impaciência. Ela passou os dedos na boca para limpá-la caso estivesse suja, fitando com insegurança a mão a alguns palmos de seu rosto. Deveria imaginar que ficar ali sozinha aquela hora da noite seria perigoso. Diante do silêncio da mulher, Alfonso continuou: - Ora, vamos, só vim ajudá-la. Não tenho todo o tempo do mundo. Se não quiser, já estou voltando para casa.

- Ah sim, espere! - pediu ela, gritando sobre o barulho do vento.

Ele viu o olhar azul dela brilhar de gratidão logo que se levantou. Os dedos apertavam-no na mão como se quisessem demonstrar confiança, pedindo de volta uma garantia de que ele não fosse um mau-feitor. Os cabelos dela estavam ensopados, o sobretudo igualmente.

Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora