Parte II - 1

1.3K 77 4
                                    

***
Connecticut
06 de novembro de 2017

- Olá, Herrera - a idosa cumprimentou logo que Alfonso abriu a porta, um tanto assustada pela pouca roupa do homem - Oh, você estava dormindo?

- A senhora tocou a campainha cinco vezes, poderia ter percebido, não? - respondeu ele, coçando os olhos, com o velho tom antipático que usava para deixar claro que não gostava de visitas.

As vezes Poncho podia entender o porquê da vizinhança insistir em dizer por aí que ele era um sujeito enigmático e mal humorado. Ele não conversava; detestava dialogar com estranhos; não acenava e não dava bom dia para ninguém. Quando estava em seus melhores dias, entortava a boca para os vizinhos na rua e todos entendiam aquilo como um sorriso mal diagramado. Contudo, Poncho preferia pensar que era simplesmente reservado, por isso era completamente compreensível que se irritasse com tanta facilidade cada vez que invadiam sua privacidade.

A Sra Fogg riu, pouco se importando com a falta de cortesia de Alfonso. Estava acostumada.

- Tudo bem, é aceitável que você durma até tarde. Precisa de uma trégua no trabalho, meu filho - ela gracejou - Eu só queria lhe oferecer um pedaço de bolo.

- O terceiro desta semana, sim? - ele retrucou, descendo o olhar para as mãos de Lucy que estendiam a bandeja a sua frente. A mulher soltou uma risada aguda, repuxando a fina pele ao redor de todo o rosto oval. Ela pelo menos era uma velhinha engraçada, embora muitíssimo bisbilhoteira e inconveniente. Chata, Alfonso costumava dizer quando sua mãe lhe telefonava para saber como estava passando.

- Você não vai me deixar entrar para que corte um pedaço para você? - Lucy perguntou, aproveitando para esticar o pescoço e ver o que havia ali. Nada especial ou diferente. Mas, com certeza, do lado de dentro ela poderia observar melhor.

Poncho hesitou. A princípio, sentiu uma vontade tremenda de arrastá-la de volta a sua casa dizendo o quanto era feio para alguém daquela idade ser tão abelhuda. Em vez disso, afastou o corpo e, com um gesto amplo, permitiu que ela entrasse.

Imediatamente a mulher rolou o olhar pelos cantos da sala, erguendo o queixo para não esquecer de observar nenhum detalhe.

- O que está procurando, Sra Fogg?

- Nada! - ela exclamou, pondo a bandeja sobre a mesa de centro e sorrindo enquanto passava as duas mãos na barra de seu avental xadrez - Só estava verificando como andam as coisas por aqui. Sou muito boa em descobrir hóspedes indesejados. Sabe a que me refiro, ratos, baratas, cupins. Ainda mais agora, no inverno, tem muito disso. Você se dá bem morando sozinho?

Alfonso se limitou a assentir, apontando o caminho da cozinha. Tomou a bandeja das mãos de Lucy num ato de cavalheirismo que, por segundos, cogitou não fazê-lo apenas para que ela tivesse um motivo de verdade para difamá-lo por aí.

- Claro. Sinto que a calefação aqui é perfeita. Está quentinho - respondeu ela, empolgada, sem esquecer de olhar atrás do sofá enquanto caminhavam para o outro cômodo. Ela retirou as luvas grossas e o xale que enrolava seu pescoço em voltas polpudas e os jogou sobre o balcão da cozinha, caminhando graciosamente por ali.

Alfonso revirou os olhos. Precisava partir logo seu pedaço de bolo - delicioso, diga-se de passagem - e livrar-se daqueles olhares especulativos.

A idosa rodeou o balcão, atenta a tudo e, para a surpresa de Alfonso, começou a abrir todas as portas do armário.

- Ei! - ele chamou - O que está fazendo?

- Querido, você precisa de uma tigela adequada para conservar o sabor do bolo. Não pode ser qualquer uma ou ele poderá estragar.

Para SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora