Engano, era a moça da copa trazendo o carrinho com o lanche da tarde. Pão com manteiga (às vezes, bolo) e café com leite. Colocou meu prato no criado-mudo e foi abrir a porta do outro quarto. Foi então que pude ver meu vizinho. Um cara de uns trinta anos, magérrimo, cabelo todo despenteado. Ele estava de pé, não parecia ser do time dos estropiados. Nada de saquinhos de urina, nada de soro, nenhum gesso. Estava com uma cara horrível, como se tivesse visto um fantasma. Olhou assustadíssimo o prato e pulou na cama cobrindo a cabeça com um travesseiro. A moça deixou o prato e fechou a porta. Perguntei o que é que ele tinha. Ela girou o dedo ao redor da cabeça como quem diz que o cara é doente da cabeça.
"Desfilando na passarela, mulato, uns trinta anos, aspecto imundo..."
Que barato o cara com um caninho de soro no braço, e andava carregando o pedestal onde ficava a garrafinha. Lembrei-me de que usara esse soro num pedestal parecido, mas não dava pra sair por aí carregando. Realmente, se o cara tem que ir ao banheiro e não pode tirar aquilo da veia, por que não sair carregando? Parecia um cachorrinho de estimação sendo levado por seu dono por uma coleira.
Na minha porta, ele descansou o pedestal no chão, olhou-me curiosamente. Nenhum cumprimento, nenhum aceno. Pegou o treco de novo e saiu.
Na volta, fez o mesmo (todo mundo que ia, tinha que voltar, óbvio). Mas dessa vez deu um sorriso e mandou um tchauzinho. Pronto. Estava fazendo novas amizades neste mundinho cão que se chama hospital, cenário das podridões de uma sociedade que se diz civilizada. Está presente aí a marginália, que de jeito nenhum pode pôr a cara na rua. Cure-se, meu filho, depois volte, é pro seu bem, estamos tentando prolongar um pouco mais a sua vida. Tentamos substituir sua perna, que foi pro esgoto, curar seu intestino pra você cagar melhor, isolar você, se sua cabeça for meio doidinha.
O hospital é a droga da sociedade, o carro-chefe da segurança, das ilusões. Pode pôr sua vida em risco, que ele garante. Estropie-se, que não estará sozinho. Com o pouco que você sofre em nossas mãos, e alguma paciência, estará pronto para viver novamente entre os filhos do senhor, compartilhar com eles o sofrimento de uma vida cheia de buscas e riscos.
É, meu caro, você me fará companhia um dia. Seu corpo se compõe das mesmas substâncias que o meu. Somos filhos de um mesmo tipo de célula. Mas não seja tão imbecil aponto de mergulhar num lago, bêbado e chapado, sem antes conhecer a sua fundura.
Confetes, batucadas, serpentinas ÊÊÊÊÊÊ, carnaval no país do futebol Samba, mulher pelada Bum bum paticumbum
A moda esse ano é top-less
ÊÊÊÊÊÊ, todo o mundo de peitinho de fora Abertura chegou pro carnaval
A estrela-d'alva, no céu desponta...
Amélia que era mulher de verdade (era uma trouxa) Amélia não tinha a menor vaidade (pros machistas) Mamãe, eu quero
Mamãe, eu quero... SAIR DAQUI!!!
– Mais um tempinho ainda, o Mangueira me disse que em menos de um mês você vai pra casa.
– Mas o problema não é ir pra casa. Eu quero andar, pular, sair correndo, ficar sozinho, viajar.
– Mas eu não posso fazer nada, filhinho...
Coitada da minha mãe, sempre quando vinha com esse "não posso fazer nada", fazia uma cara de sentimento de culpa. Mãe, não foi sua culpa. Estou assim por cagada própria.
Recordar é viver, eu ontem sonhei com você
Quantas vezes eu penso em voltar no tempo para segundos antes de me atirar naquele lago. Mas tudo bem. Paciência é a prova dos nove. Procure pensar em daqui a um ano. Estarei fora dessa, numa boa.
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Feliz ano velho
AdventureMarcelo tocava guitarra, jogava futebol e estudava engenharia agrônoma. Aos vinte anos sofreu um acidente que o deixou paralítico. Feliz Ano Velho repensa sua vida. Dizer que é um relato de vida comovente é fazer pacto com o lugar comum. Mas e daí...