Capítulo 2: Sonho

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Os próximos segundos foram acompanhados um denso silêncio quase constrangedor. O olhar vazio do detetive contemplava os olhos âmbares da parceira, que se inquietava com a situação.

- Está perdido, querido?

Nenhuma resposta saltou daquele vale de inseguranças. Rafael parecia entretido demais naquela cor de mel. O então tom negro de sua joia voadora, tornara-se melado, provocador e tentadora.

Por dentro daquele corpo cansado e forte, a mente do detetive trabalhava em inúmeras formas de se livrar de si mesma, já que sua condição não era das melhores.

- Se você não se importar, mas eu preciso de um gole de café. - O veludo cantava.

Santos levantou-se da cadeira e foi ao encontro do seu admirador. Seus lábios em vermelho agora estavam ao redor do copo de papel, enquanto sua garganta aquecia-se com a bebida. Ao terminar, deixou sua marca como registro. Que se chamasse Santos, mas parecia deixar a marca do próprio Caim. O vermelho forte do batom perdera-se em algumas marcas soltas pela borda. Agora, o batom pedia por um sacrifício em seu altar e como oferenda, Santos passava a língua suavemente pelos lábios, de forma que a saliva brilhasse.

- Você gosta mesmo de algo com açúcar. Vou te contar um segredo... - Ela se aproximou rente ao ouvido da vítima e sussurrou - Eu adoro camisinhas doces, querido.

O corpo torneado de Santos passeava ao se aproximar de Rafael. O homem de casaco preto ainda estava em outra dimensão, perdido buscando entender porque seu presente havia sumido. Por que aquela mulher estava tentando tanto consegui-lo?

- Não precisa ter vergonha. Eu só morder quando eu precisar.

A feição da mulher mudara. Seus olhos pareciam faiscar, à medida que se aproximava dos lábios do parceiro de equipe. Aos poucos, um beijo selou-se no meio de todos ali. Não seria mais vergonhoso do que ver Santos beijando o próprio namorado, mas ali, dentro daquela delegacia, a principal preocupação não era a corrupção e sim o sigilo.

Não se sabia o motivo daquela obceção, mas havia já algum tempo que Santos almejava o corpo de Rafael. Talvez desejo, talvez pena, mas com certeza não era por motivo bom.

- Devo perguntar o motivo de não estarem trabalhando?

A voz fria de Oldman percorreu os ouvidos de ambos. Com cabeça baixa, Santos pediu desculpas enquanto sentava. Oldman precisou pegar Rafael pelo braço e dirigi-lo ao seu lugar.

- Holmes, espero que ande tomando seus remédios. Não posso contar com a sorte de enlouquecer em um dia de trabalho.

Lentamente, tudo voltava aos eixos. Os lábios ainda molhados puderam dar a língua, o adodiçado sabor de morango do batom. A mente rebobinava a cena humilhante de poucos instantes atrás e o objetivo original vinha em sua direção.

"Preciso continuar a trabalhar."

Oldman periodicamente passava pelos funcionários afim de evitar mais descasos. Rafael pediu à Deus pra que não houvessem mais problemas e pudesse continuar sua função. Sua mente agora refletia sobre o ocorrido. Santos era uma mulher linda, de cabelos negros, alta e magra. Já não era mais uma estagiária da Delegacia e trabalhava de forma excepcional. Entretanto, há algum tempo, desde os rumores de aposentadoria de Oldman, seu trabalho parecia mais organizado, mais bem feito. Era claro que qualquer um tentaria o cargo de Delegado, mas por que era tão importante aquilo? Por que o pequeno Holmes se interessava em algo tão diferente?

Aos poucos, a cidade ia ficando cada vez mais silenciosa. As horas passavam e até o vento dormia. Os doces já haviam acabado e o cappuccino terminara. Rafael se encontrava apenas preenchendo sua papelada, assinando documentos e organizando casos passados. O sono batia forte, deixando seu corpo pesado. As tardes em que deveria dormir o estavam deixando inquieto. Provas, tarefas e complicações em sua vida o faziam delirar.

- Holmes. Venha até a minha sala, por favor.

Oldman olhava sério para ele. Parecia que muito rancor o dominava e aquilo não poderia ser nada bom.

O sono havia desaparecido e agora uma horda de terror o incomodava. Os passos até a sala de seu chefe pareciam se afundar em areia movediça.

Ao olhar para baixo, Rafael via seu corpo afundar em algo pegajoso e sujo. Sua mente estava pregando mais uma peça ou finalmente estaria sofrendo algo sobrenatural? O suor em sua nuca corria frio pelas costas e a língua agora estava seca. Choramingando, ele caminhava de forma lenta e pesada.

Quem o olhasse na Delegacia, veria apenas um louco se agarrando de mesa em mesa para chegar ao fim do corredor. Newman por fim o ajudou a chegar na sala de seu chefe. Rafael respirou fundo e o mundo mais uma vez tomou a forma original.

Ao bater na porta, Oldman o recebeu secamente. Na sala, não havia nada de relevante. Uma cadeira giratória, uma mesa com um computador e um notebook. Alguns livros em uma estante ao lado e à porta, dois sofás de dois lugares de frente um para o outro, com uma mesa de vidro no meio.

- Sente-se no sofá, pude ver que está mal.

O jovem concordou e sentou.

- Como pôde ouvir por essa Delegacia, eu estou prestes a me aposentar.

As palavras vieram secas, com uma leve tosse por cima.

- Achei que fossem só rumores, senhor.

- Rumores esses que estão corretos. Diga-me, você está no último ano da faculdade, correto?

Era verdade então. Tudo aquilo ali em diante se tornaria um Inferno. Todos almejando a nova vaga, trabalhando como perfeitos soldados, tudo para conseguir um pedaço de carne maior.

- Estou.

- Estou correto de que irá formar este ano, não é?

- Sim, senhor.

Um breve suspiro acompanhou a voz cansada de Oldman.

- Como sabe, Rafael, apenas fazendo o concurso para Delegado pode levar alguém para o cargo. Mas é claro que ainda há mais uma possibilidade.

A figura assustada na sala engolia em seco.

- Há alguém nesta Delegacia que você confie para o cargo?

- Por que a pergunta, senhor?

- Eu só posso ter a certeza do que farei a seguir se me der a resposta certa.

Ele sabia onde aquilo ia chegar.

- Bem, eu confio no Newman, senhor.

- E por que confia?

As perguntas não paravam de vir. Aquela entrevista só tinha uma finalidade. Alguém havia feito merda e agora, alguém ia pagar.

- Ele sempre me ajudou desde que cheguei. Eu só tenho a agradecer.

- Você não é cego, Rafael. É esquizofrênico.

As palavras bateram em seu peito lentamente. Ele baixara a cabeça, sabendo que finalmente seria culpado de algo.

- Você está indo a um médico, correto?

- O Doutor Sigma.

- Sim... Ele mesmo. Quem o indicou?

- O Barnes, senhor. Por quê?

- Me diga... Por que o Barnes estão visita o Doutor Brown, então?

Como poderia saber? Na realidade, haveria mais algum motivo pra que aquilo continuasse?

- Eu não sei.

- Como bem sabe, os funcionários têm plano de saúde, Rafael. Você passará a ver o Doutor Brown logo mais.

- Senhor?

- Eu o indico a vaga de Delegado.

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