A Criança Abençoada - Einne II

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— Posso saber que diabos você está fazendo com o gato, Einne? — Bernardo não estava nada amigável.

— Eu estava... brincando com ele. — respondeu Einne depois de alguns segundos silenciosos.

— Brincando de quê? — indagou Bernardo de cara feia.

Einne permaneceu num profundo silêncio sombrio. Ele aproveitou para esbravejar que o guarda-roupa, tinha lhe custado uma nota preta, enquanto a menina só se martirizava: "aí, como pude ser tão estúpida de deixar a porta destrancada? A verdade é que estava tão empolgada com o experimento que esqueci completamente".

— Fale a verdade, menina, senão eu vou te dar uma surra! — ele ameaçou.

Bernardo não percebeu que a ameaça despertou a atenção da boneca de Einne. O brinquedo ergueu uma das mãos, pegando um dos lápis de cor, pontiagudos, da caneca portas-caneta. Fitou o padrasto perto de sua dona. O brinquedo ficou esperando se o padrasto iria realmente ter a coragem de dar um tapa na cara de Einne. Era só isso que a boneca estava esperando para pular nele e enfiar o pontudo lápis todo em seu ouvido e depois outros dois em seus olhos. O padrasto ergueu a mão ameaçadoramente. A boneca se ergue e pegou mais dois lápis de cor bem pontudos. Percebendo onde a situação iria chegar à menina soltou sua voz mais meiga.

— Eu estava testando ver se consigo trocar de corpo com o gato... — disse Einne Nicole com a resignação de quem confessa os pecados. — Mas, pra isso, eu precisava tirar a alma do Lúcifer, quero dizer, do Felício.

O padrasto de Einne se reteve com a explicação. Ele baixou a mão. A boneca voltou a se sentar, mas continuou segurando firme os lápis de cor.

— E pra que raios você iria querer trocar de corpo com o gato? — retrucou Bernardo irritado, achando absurda a explicação, colocando todos os dedos abertos na face em descrédito. Achando que a menina estava com um parafuso a menos.

— Porque ele pode caminhar e eu não... — resmungou retraída, cheia daquela voz doce e inocente.

A explicação parecia ter quebrado Bernardo ao meio no primeiro instante, embora o seu coração não fosse feito de sentimentalismos.

— Isso não é desculpa! Fala a real pra mim, Einne, você estava maltratando o gatinho, não estava?

— Não, não... — disse a menina, embora a sua voz não trouxesse a convicção das palavras.

— E tem mais, se fizer qualquer coisa estranha com ele, eu mesmo volto aqui e, juro por Deus, que eu quebro os teus dois braços, está me entendendo? Agora, vá dormir que você tem aula amanhã!

A grosseria de Bernardo ficou somente na fala. O padrasto saiu pisando duro. A menina ia lamuriar sua revolta para a boneca, quando percebeu que ela tinha saído da escrivaninha, descido até o chão e já estava indo em direção à porta, engatinhando para o corredor, indo tirar satisfações com o padrasto dela, armada com vários lápis de cor, somente os bem apontados.

— Não faça isso, volta aqui. — sussurrou Einne. — Eu já resolvi isso.

Nesse momento a mãe surgiu como uma flecha ao ouvir a reclamação feita por Bernardo, sobre o que a santa da filhinha dela havia aprontado. Rejane entrou no quarto e só parou porque chutou alguma coisa no chão. A mãe de Einne deu um saltou para o lado quando percebeu que havia chutado a boneca ali na porta.

— Tá tudo bem, Kali. Minha mãe fez sem querer. — apaziguou a menina, mas tinha certeza que a sua boneca queria arrancar um pedaço da perna de Rejane à base de dentadas.

Rejane já estava acostumada com a filha falando com a boneca como se fosse gente. O que não estava acostumada foi quando se voltou para o guarda-roupa e os riscados no chão, vendo todos aqueles desenhos macabros e profanos e começou uma reza interminável.

Após isso, ela pegou a menina e a pôs na cama.

— Jesus Cristo, menina! Fica brincando com essas coisas que eu quero só ver quando o demônio aparecer pra você! — ameaçou Rejane.

— No dia que eu ver o diabo, eu vou me casar com ele. — sibilou Einne, baixinho.

Rejane fingiu que não ouviu nada. Acomodou a menina na cama com o mesmo carinho de quem esfrega roupa no tanque. Ameaçou contar ao pastor sobre as atitudes dela. Depois foi embora resmungando sobre um castigo adequado.

Einne sentiu a boneca galgando seu corpo por cima da coberta. Ergueu a cabeça e encontrou o brinquedo ali, com um semblante a emitir certa preocupação.

— Aí, Kali não se zanga com a minha mãe, que ela é uma tapada. — porém, a menina percebeu que a agitação da boneca não era por causa da sua mãe ou padrasto. — O que foi, Kali?

A boneca contou algo para a menina, que a deixou alarmada, então o brinquedo virou a cabeça em 360 graus. Abriu a boca emitindo um ruído sonoro inaudível ao ouvido humano. A menina fez uma prece sussurrada, e depois desmaiou ao mesmo minuto em que a boneca desapareceu.

O SOBRETUDO VERMELHO AFOGADO - PARTE I : A CRIANÇAOnde histórias criam vida. Descubra agora