Avedikian percebeu que o cheiro de sangue se esvaneceu no ar como se fosse um perfume a perder a sua fragrância. Era um trote! Não havia sangue ali. Lembrou-se de ter ouvido boatos sobre vampiros desaparecendo no Horto Florestal, mas nunca levou àquelas fofocas a sério; pelos menos não até esta noite! A respiração canina denunciou um incontável número de cães sarnentos; pele morta com algumas partes dos ossos à mostra, olhos oblíquos esbranquiçados e a baba asquerosa escorrendo fluente entre os dentes afiados. Pareciam bastante esfomeados. Wanessa se viu cercada pela matilha feroz. Um dos cães, ansiosos por provar a carne morta da vampira, avançou contra ela bruscamente, sendo o primeiro a experimentar o punho fechado dela e a conferir seu sabor, juntamente com o da terra fria e úmida, ao cair de boca no chão.
O segundo candidato recebeu um chute frontal no focinho, afundando-o contra a mandíbula inferior. A represália serviu de aviso aos demais cães semimortos que, mesmo famintos, hesitaram em atacar a vampira. Então, uma risada feminina pueril surgiu no ar. Wanessa sentiu alguém perto dela e, quando se virou, não viu ninguém. A vampira experimentou um calafrio lhe subindo pela espinha, eriçando os seus pelos mortos.
Wanessa buscou a origem daquele som e, olhando para o galho da árvore, avistou uma boneca de apenas um olho azul, metida em um vestidinho roxo encardido. Ficou perplexa, pois não havia notado aquele entulho antes, quando olhou pela primeira vez em direção à árvore. A um ser humano poderia ser normal que objetos passassem despercebidos, mas para um vampiro, aquilo era totalmente incomum.
Não teve tempo de filosofar como algo podia escapar aos infalíveis sentidos vampirescos, pois a matilha agora havia aumentada em quatro vezes o seu número. A nova risada infantil soou como sinal de ataque e a matilha inteira de cães semimortos avançou de uma vez! O cheiro podre deles chegou primeiro em Wanessa.
Girou o braço e acertou o crânio de um dos cães que tentou abocanhá-la pelas costas, esmigalhando os ossos por dentro da carne fétida. Em seguida, mais quatro cães fizeram o mesmo, sendo repelidos de igual modo. Quanto mais abatia os cães semimortos, mais deles apareciam para enfrentá-la. Em meio à luta ferrenha, quase impossível de ser vencida, a vampira Wanessa pulou em cima de uma árvore com um salto sobre-humano.
Ela se lançou para outros galhos, sendo perseguida pelos cães raivosos. Alguns cães tentavam pular e subir nas árvores sem sucesso. De repente, um dos galhos grossos em que a vampira Avedikian ainda iria colocar o pé descalço se rompeu, bruscamente, fazendo-a despencar bem no meio da matilha em movimento.
Uma força oculta queria impedi-la de fugir.
Por pouco não foi dilacerada pelos cães, pois cambaleou e continuou a correr, massacrando alguns cães durante o processo. Wanessa fez dos dedos finos garras, com aquelas unhas afiadas a fim de arrancar as gargantas dos cães imundos. Cada golpe dado por ela seguia-se de um grunhido canino.
Correndo, abrindo caminho à força, lambeu a ponta dos dedos molhados por aquele sangue vermelho e tão atraente, contudo, o gosto era desagradável. Aquele desprazer envenenou sua alma. Continuou a combater os cães de forma violenta e sagaz, só que desta vez sem voltar a experimentar o sangue deles.
Então, um vulto noturno se aproximou pelas suas costas. A vampira estava ocupada demais na destruição da matilha incansável, para perceber o vulto noturno. Pressentiu uma sensação desagradável e gélida atrás dela. Livrou-se da barreira de cães cadáveres, antes que outros deles criassem coragem de enfrentá-la, e continuou a correr.
O vulto passou a persegui-la. Wanessa saltou em um galho de árvore. Seu suor sanguíneo caindo sobre a face; as pontas dos dedos coçando, enquanto novas unhas iam nascendo. As outras haviam sido fincadas nos cães imundos. Ela demonstrava um leve arfar, não que precisasse de ar, mas estava se cansando daquilo. Rezou para Christofer, e, passou a sentir-se revigorada. Era sua maneira de evocar o poder de seu sangue, o sangue do Deus-vampiro. Sentiu-se imbatível e estava disposta a massacrar os cães até que não sobrasse nenhum.
Entretanto, um nevoeiro cobriu o chão como uma onda. Os cães que estavam de pé recuaram. Os destruídos foram engolidos pela terra, limpando o solo da presença dos bichos. Ela se virou para ver o que causava o frio em suas costas e deu de cara com uma boneca olhando-a, julgando-a, atracada ao seu dorso e, num manear da cabeça de plástico, o galho se partiu levando a vampira a se estatelar no chão.
Os ouvidos sensíveis da vampira captaram um pisar esmagando folhas secas e, ao seguir o som, ela viu aquela horrível aparição travestida de uma menina pálida, aparentando ter uns onze ou doze anos, de vestidinho azul-claro encardido sem mangas. Seus cabelos eram repartidos e amarrados por fitas roxas, estilo maria-chiquinha.
Aqueles os olhos pretos e íris branca irradiavam cólera e seu rosto bonito estava borrado com o choro de lágrimas escuras de rancor. A pele dela não era como a dos vampiros, era de uma brancura quase luminosa, muito embora dava para enxergar uma necrose por baixo em tons marrom-escuros. O que mais causava abominação na vampira era que um dos seus pés estava torto, quase virado para dentro, que fazia a menina fantasma caminhar feito zumbi.
— Você invadiu meu santuário. E o preço será o teu sangue! — as palavras dela pareciam pulsações telefônicas cortadas com chiados.
Wanessa tentou dialogar com a aparição. Inútil. A boneca, que não estava mais presa em suas costas, apareceu ao lado da vampira e começou a vomitar sangue em enormes quantidades, num jorro interminável. Quando a vampira se afastou para não melar os pés descalços, ainda que seduzida pela visão do mar vermelho e salivando de desejo, teve dificuldade de fugir do vício-armadilha.
A vampiresa teve cinco ferroadas em seu antebraço como se fossem feitas picadas de abelhas. O desespero alcançou um ponto crítico em seu coração morto. Conheceu as pontas das unhas pretas da menina fantasmagórica, fincadas em sua carne, grampeando o seu antebraço. Wanessa trocou olhares com a menininha do sobrenatural, então percebeu que aqueles olhos malignos cobiçavam a sua destruição e nada mais.
Pela primeira vez, as pernas da vampira Avedikian ficaram trêmulas, quando o líquido vermelho tocou seus pés e o chão debaixo dela começou a se dissolver numa pasta vermelha, como se fosse areia movediça, afundando-a num imenso lamaçal vermelho qual a sugava mais e mais para baixo. Tentou escapar, a menina fantasmagórica passou a estrangulá-la, e forçá-la para dentro, tentando afogá-la de qualquer jeito. Quando o sangue entrou pelas suas narinas e boca, pôde degustar o nojo e o asco de um sangue morto e pastoso. O mesmo desprazer de beber o sangue dos cães mortos, porém bem pior! A menina fantasma disse qualquer coisa, que soou como uma ameaça dela não ser a primeira e nem a última vampira a ser sacrificada naquele local.
Wanessa se debatia, mas nada conseguia fazer em legítima defesa, pois a força descomunal da menina comprimia a sua garganta, impedindo-a de se libertar. Era intangível a agonia da vampira Avedikian, que se esperneava, mostrando a sua fúria com os caninos vampirescos à mostra.
Em meio ao pânico, agarrou aqueles finos braços da menina, e os apertou com tanta raiva a ponto de se escutar o estalo dos ossinhos se partindo dentro da carne. As mãos finas da agressora perderam a força e a vampira usou as pernas para empurrar a menina, lançando-a metros de distância. A vampira Avedikian levantou-se, quando seus pés encontraram uma parte sólida onde podia pisar.
Nenhum vampiro comum suportaria tudo aquilo, mas o sangue do mais poderoso vampiro-Deus corria em suas veias.
Aliviada, procurou pela menina assombrosa por todas as direções. Nada! Nem sinal da boneca diabólica também. Buscou sair daquele lamaçal de sangue morto. Sentiu esperança quando se viu banhada pela luz da lua, cálida e majestosa, surgindo por trás das nuvens negras, como uma grande pérola luminosa. Ela não percebeu a menina emergir do próprio lamaçal.
Um arrepio gélido e sobrenatural fez Wanessa perceber que aquele ser diabólico estava atrás dela. Mais que depressa, a vampira atacou a menina pegando-a pelo pescoço. Então, a boneca caiu em cima dela armada com uma estaca de madeira, perfurando o ombro da vampira. E num frêmito violento, a aparição, já com os bracinhos curados, livrou-se da mão de Wanessa em seu pescoço, para agarrar o pescoço da vampira e ser sugada para dentro do lamaçal puxando a vampira consigo, demonstrando que este estava mais profundo e pastoso. Wanessa deu tudo de si para se libertar. Resistiu bravamente. A aparição sobrenatural evocou tentáculos, feitos de arame farpado, surgidos do próprio lamaçal para se enrolarem sobre a cria de Christofer, refreando toda a fúria e movimentos da vampira.
O grito que escapou por entre a garganta e os caninos ferozes de Wanessa Avedikian deixaram seu som cristalizado no ar, como sendo a sua última arma de defesa a ecoar por entre as velhas árvores naquela noite escura.
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O SOBRETUDO VERMELHO AFOGADO - PARTE I : A CRIANÇA
Fantasia" - Deixa sussurrar um segredinho no teu ouvido: as pessoas que eu mato, não vão para o céu." Primeiro volume da Doulogia: O SOBRETUDO VERMELHO AFOGADO - Parte I: A Criança. O escritor Rodrigo Rassoul nos apresenta uma literatura frenética e brutal...