Pego mais um papel da pilha que se forma na minha mesa e tento me concentrar no caso que vou defender amanhã. É algo simples, com provas incontestáveis contra o acusado, no entanto, estou aqui revirando cada folha do processo como se tudo estivesse perdido.
Merda!
Eu não sou assim. Consegui conquistar uma carreira de prestígio no Direito criminal por ser incisivo e perspicaz, nada parecido com o receoso que vejo agora. É tudo culpa daquele maldito Enzo.
Ele conseguiu despertar uma ferida profunda adormecida em mim, a raiva de falhar e deixar os maus vencerem.
Mês passado, eu auxiliei a Promotoria no caso de uma universitária estuprada por um playboyzinho da faculdade. Carla era bolsista e de família humilde, não queria, de jeito nenhum, prestar queixa no início, por medo de não dar em nada e ela sofrer represálias.
Mas havia provas suficientes para incriminá-lo só com o exame de corpo de delito e os vídeos da festa. O garoto, bêbado, toda hora dava em cima da jovem, mesmo ela se esquivando dele.
Eu pensei que seria fácil, e até foi no começo.
Ele chegou a ser preso, contudo, a influência e o poder econômico dos seus pais o fizeram sair rapidinho, pagando uma fiança generosa. Enzo está respondendo o processo em liberdade.
O irônico da história é que essa palavra nunca mais fará parte do vocabulário da Carla. Dois dias depois que ele foi solto, ela se matou. Cortou os pulsos e sangrou até morrer. O desespero da sua mãe não sai da minha cabeça.
Mesmo não sendo culpa minha ele ter sido solto, ando muito estressado. Puto da vida com a injustiça que favorece os bandidos e pune as pessoas boas.
Carla tinha tantos sonhos. Ela queria ser engenheira, fazer mestrado, ter uma família.
Desejos semelhantes ao que tive no passado e quase foram arrancados de mim, pelo mesmo motivo: a impunidade. Aliás, foram arrancados. Eu até consegui superar. Estudei, cresci profissionalmente, no entanto, o que eu mais desejava se foi...
Bufo, cansado.
Eu queria esquecer meu passado, recomeçar do zero, mas está cada vez mais difícil. Quando eu penso que vou conseguir, alguma coisa acontece e as lembranças sambam na minha cara, jogando tudo que passei. Tudo que perdi.
Levanto da cadeira, esfregando as mãos no rosto, e sigo até a janela de vidro no final da sala. Olho para baixo e observo os carros e as pessoas caminharem de um lado para o outro. Do 21º andar parecem até miniaturas.
Quem diria que uma pessoa sem perspectiva nenhuma na infância trabalharia em um dos escritórios mais requisitados de São Paulo, na Avenida Paulista?
Nem eu acreditaria se me dissessem isso lá atrás.
Subo o olhar e vejo as nuvens. Minhas velhas amigas. Sorrio, mesmo que quase sem vontade, para a figura de um circo que surge em minha mente.
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RomanceSérie Sentidos - Livro 1 Histórias independentes O que você faria se a pessoa mais importante da sua vida sumisse de repente, sem deixar vestígios? Pedro está há 14 anos tentando entender como Joana, sua amiga de infância e grande amor, desapareceu...