Parte I; Que os Jogos comecem.

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O cheiro de mar faz com que eu acorde desesperada, com esse desespero tento me levantar sendo empurrada por uma força invisível novamente para a cama. Mal consigo me equilibrar. Encosto minha cabeça novamente na cabeceira de minha cama e fecho meus olhos, tentando voltar ao estado de sono profundo mas treinando minha mente para evitar aqueles pesadelos.

Não funciona muito bem, apesar de meu esforço. Volto a sonhar novamente com pessoas sendo queimadas, me recordando do cheiro pútrido de suas peles que borbulhavam até soltar de seus ossos. Mas dessa vez o cheiro do mar me traz de volta mais calmamente. Quando finalmente me dou por vencida e me levanto de minha cama, o sol já se encontra a pino no céu.

Minha casa na Aldeia dos Vitoriosos fica bem entre Mags e Sewald. Nossa Aldeia, é uma série de casas em atracadouros com barcos ancorados. Minha casa, tem as paredes da cor verde água e uma delas é decorada de estrelas-do-mar. Eu ganhei uma edição dos Jogos Vorazes, então tecnicamente não precisaria trabalhar o resto de minha vida – mas não é o que faço. Também tecnicamente, não sou quem digo ser e isso não posso contar a ninguém.

Vou até meu banheiro - que tem uma das janelas aberta e por isso tem muita luz natural – e me encaro no espelho, esperando que meu reflexo me diga o quão mentirosa eu sou. Tudo o que vejo são meus olhos de um verde claríssimo e olheiras de noites sem dormir, combinados com meus cabelos negros tristemente ondulados e sem vida.

Meu corpo nu diz que já vi dias melhores, apesar da fartura de alimentos. Existem em mim cicatrizes piores do que as que posso ver no espelho, toco minha barriga nua onde a mais profunda delas se instalou como raiz. Em mais um de muitos acessos, quebro o espelho.

Não me importando com o vidro quebrado, deixo-o lá como um lembrete da minha instabilidade. Tomo um banho rápido e saio, passando pelo atracadouro em direção à praia. De longe, posso ver que o Lulla – o barco que um dia foi de meu pai e agora pertence à Finnick Odair – já está no mar. Também posso ver Finnick e Annie Cresta abraçados na proa. Lembro-me então de uma foto antiga de minha mãe – Tallulah, que emprestou seu nome ao barco – naquele mesmo local, o que faz com que aquela cena me doa ainda mais.

Vejo Delma e Earwyn me esperando e cumprimento as duas com um leve sorriso.

"Não deveríamos estar aqui hoje" Del me informa com seu tom de voz polido "Você, mais do ninguém não deveria ter vindo, Mer."

"Besteira, a colheita é só daqui a duas horas. Temos tempo de sobra para puxar as redes."

A maioria das pessoas vive nos dizendo que aquele trabalho não serve bem para as mãos delicadas de mulheres, mas também não acho justo que tenhamos que limpar todos os peixes e frutos do mar para que sejam enviados à Capital. Quem nos vê fazendo o trabalho de limpeza pode imaginar que é um trabalho fácil, quando na verdade é o maior causador de todas nossas cicatrizes nas mãos. Pelo menos a pesca nos machuca menos do que quando enfiamos as facas afiadas em nossos dedos, podendo até cortar um tendão – como já vi acontecendo.

Puxamos as redes de camarão do mar, o que me faz ter que olhá-lo novamente. A felicidade irradiada do Lulla faz com que eu seja derrubada por uma onda. Uma hora de trabalho árduo depois, está tudo pronto e preciso novamente me banhar para tirar o cheiro de mar de mim.

Enquanto caminho para casa, tenho a infelicidade de seguir o caminho com Finnick e Annie às minhas costas. Consigo ouvi-los num embate se devem me cumprimentar ou não, com Finnick fortemente oposto a ideia.

Ainda assim, Annie decide que vale à pena tentar com um "Olá, Meredith". Pela sua voz, sei que andou chorando em algum momento nas últimas horas. Annie participou de uma edição dos Jogos dois anos depois de mim e voltou completamente abalada. Ainda sim, tinha conquistado o amor e fidelidade de Finnick Odair. Acho que só por Annie ter a capacidade de amar apesar de tudo, ela já é uma pessoa melhor que eu.

Me pergunto se fingir que não ouvi vai adiantar de alguma coisa, mas logo percebo que não quando ela me faz parar quando puxa minha mão. Sou obrigada pela primeira vez no dia à encará-los de frente.

"Ah, olá Annie." engulo a seco, quando o sol bate em meus olhos "Odair".

"Marine" ele me cumprimenta pelo meu sobrenome assim como faço com ele. Nos tratamos com o máximo de cautela e rigidez depois da briga que tivemos ao mentorear nos dois anos seguintes aos meus Jogos – incluindo os de Annie, que foi quando se apaixonaram de vez -, realmente preferia que tivessem escolhido outro tributo no meu lugar. Nunca servi para dar conselhos, mas a Capital nos convenceu de tal modo, dizendo que éramos uma dupla atraente demais para que não aparecêssemos como mentores.

"Você vai hoje?" Annie pergunta com seu olhar de gatinho perdido e completa com um "Na colheita?" - como se eu não tivesse entendido da primeira vez que ela falou comigo -, sabendo que a resposta seria sim. Balanço minha cabeça em afirmativa, mas logo me desvencilho deles. Preciso estar sozinha.

Ao chegar em casa, minhas roupas são brevemente escolhidas e deixadas em cima da minha cama. Um vestido branco simples de alças e sandálias de palha, e uma coroa de flores azuis para os cabelos. Espero que as flores sejam vistas como o ato de rebelião que na verdade são.

Depois do banho enquanto tento secar meu cabelo com a toalha, penso em Annie.

Primeiro, sinto pena dela. Tão frágil e sorrindo, como se assistir a colheita fosse algo simples e que nada de grave pudesse acontecer. Então também me recordo de que nesta colheita eles escolherão entre um tributo feminino e um tributo masculino entre os vencedores dos Jogos Vorazes e me sinto novamente raivosa.

Desejo então que Annie e sua paz velada sejam perturbadas e que ela seja escolhida junto com Finnick, para que o amor deles murche e morra na arena. Então me sinto a pior pessoa do mundo por desejar isso e choro enquanto visto minhas roupas.Finalmente estou pronta. Antes de sair, porém, recebo uma ligação. Uma voz que eu nunca havia ouvido antes e logo depois a voz de uma das muitas pessoas que odeio me informando de uma mudança de última hora nos planos. Sorrio doentiamente enquanto deixo meu telefone no gancho.

Ao chegarmos na praça em frente ao Prédio da Justiça, todos já estão aguardando. Consigo enxergar Delma na multidão, a única pessoa com quem realmente posso contar. Ela parece triste, ao contrário da multidão. Parece até que realmente sabe que nunca mais nos veremos.

É óbvio que todos estão aliviados com a colheita desse ano. Se os vitoriosos são aqueles que serão enviados para a Arena, isso quer dizer que as crianças de suas famílias estarão à salvo.

Um a um somos convidados a subir no palco, fico próxima a Annie e Mags, que me dá um abraço quando me vê.
Vejo Irwin, Sewald e Finnick com os outros vitoriosos do sexo masculino do outro lado.

Como sempre, as mulheres são sorteadas primeiro.

O choque toma conta de mim porque quero rir e minhas pernas viram gelatina. Me sinto um monstro, pois o nome que é sorteado é o de Annie Cresta.

Catching FireOnde histórias criam vida. Descubra agora