[07] Onomatopeias de dor

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Fico impressionada com a rapidez com que o flamenguista e eu resolvemos os detalhes do trabalho. O garoto podia ser um agressor, um atirador de bolinhas de meia tigela, mas não dá para negar que também é bem desenrolado na organização acadêmica.

Quando o professor levanta sua bunda volumosa do tampo da mesa e anuncia que vai de dupla em dupla verificando o progresso de cada trabalho, o meliante logo ergue a mão para que nosso cronograma seja o primeiro a ser inspecionado.

O professor pega o caderno onde o garoto fez as anotações para examinar nossa divisão de tarefas.

— Bom, muito bom – o professor murmura como que para si mesmo. – Tarefas distribuídas de maneira bastante justa. Mas peraí – ele levanta o caderno levantado perto demais dos olhos. – Apenas um encontro pra organizar a apresentação inteira? Vocês acham que é o bastante?

— Acho que é até demais – o flamenguista responde.

E apesar da voz dele soar firme e séria ao se dirigir ao professor, não posso deixar de sentir uma pontinha de desdém voltado à minha pessoa na resposta dele.

Mas se ele pensa que pode me diminuir na frente dos mais velhos, é melhor que saiba que não sou de deixar barato.

— Pra falar a verdade, concordo que uma tarde inteira pra colocar o pingo nos is é até demais – opino. – Esse é o tipo da coisa que a gente pode resolver até mesmo durante o recreio, vapt-vupt.

— Façam como acharem melhor – o professor diz. – Mas não se esqueçam de que precisam apresentar o trabalho na frente de turma inteira. E quanto mais alinhado estiverem, melhor para a nota de vocês.

— Pode deixar – reafirmo com segurança.

Não preciso de um flamenguista para me ajudar numa simples apresentação. Nasci para os palcos. Sou tricampeã do Show de Talentos do Castelinho. Cada ano apresentando um talento diferente.

Porém, pelo visto, esse ano o único talento que terei a oportunidade de exercitar é o de fazer cara de paisagem enquanto fervilho por dentro.

— Muito bem – o professor devolve o caderno ao flamenguista e dá um passo para trás. – Estão liberados, então.

Com tal declaração o senhor dá as costas e se afasta de vez. Ouço barulhos apressados ao meu lado, viro a cabeça e me deparo com o meliante lutando contra o zíper emperrado da mochila surrada. Com um movimento brusco ele fecha o trapo feito de jeans até o final e sai em disparada.

Nem sequer tem a cortesia de se despedir.

O que por um lado é bom, pois nossa conversa está longe de chegar ao fim. Se ele pensa que a indireta que ele jogou sobre Ricardo Malheiros foi deixada de lado, é bom que ele saiba que está muito enganado.

Fecho minha Vitton na velocidade da luz e saio em disparada atrás dele.

— Marlon Brandão, volta aqui! – eu advirto.

Ele caminha como se nem fosse com ele.

Chamo-o novamente.

Ele repete o mau-comportamento.

E como ele anda cheio de propósito, com suas pernas longas de menino alto, sou obrigada a dar uma corridinha pouco elegante e me inclinar para segurá-lo pelo braço.

Ele me olha como se eu tivesse cometido um crime hediondo, ainda que a culpa seja dele, por não atender os meus chamados. Que tipo de pessoa sem educação ignora quando seu nome é gritado pelos corredores?

A arte de morder a línguaOnde histórias criam vida. Descubra agora