[09] Bicho de duzentas e cinquenta e três cabeças

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Chegou a hora da verdade.

Quer dizer, a meia hora da verdade. Porque graças a Deus até aqui nesse fim de mundo o recreio tem hora para terminar. Contudo, até mesmo trinta minutos, providos de sessenta segundos cada um, é tempo demais para estar a sós na companhia de Marlon Brandão.

Por isso chego uns minutinhos atrasadas.

Coisa pouca, nada digno de deixar alguém alarmado.

Isto é, contando que a pessoa não seja Marlon Brandão, que me encara do outro lado do pátio com olhos de canhão de guerra.

Tenho que atravessar o campo de batalha com o máximo de autoconfiança possível.

Repetindo o mantra de que cinco minutos não vão matar ninguém.

E que Marlon Brandão é um panaca nerd.

Caminho passinho a passinho, do jeito que ouvi numa canção, deixando o vento bater nos meus cabelos à vontade enquanto finjo que não estou engolindo em seco temendo minha própria reação ao ouvir as críticas duras daquele panaca ao vivo e a cores.

Sem as telas dos computadores entre nós para criar uma distância seria difícil mascarar meus ataques de raiva.

E complicaria ainda mais minha percepção pessoal, cada vez mais palpável, de que eu não presto para nada.

Nem para colocar as vírgulas nos lugares certos.

— Demorou – ele diz ao chegar para o lado no banco, a fim de ficar o mais longe possível de mim.

— Dei uma passada no banheiro – explico, me sentando no extremo oposto.

— Eu não preciso saber das suas necessidades fisiológicas – ele me lança um olhar de estranhamento.

— Quem disse que eram necessidades fisiológicas? – indago, bastante consternada com a suposição do meliante.

Apenas a título de informação, fui ao banheiro retocar o batom.

— Se não eram necessidades fisiológicas, o que era, então? – ele pergunta virando de frente para mim, com uma ruga deixando o espaço entre suas sobrancelhas ainda mais escuro que sua pele.

— Pensei que você não quisesse saber! – exclamo em tom de xeque-mate para ele, que rapidinho desfaz a ruga charmosa na testa.

— Não quero mesmo – ele diz ajeitando a pose e parecendo ainda maior no banquinho de madeira. – Estamos aqui pra falar do trabalho.

— Sim, o trabalho – me ajeito cruzando uma perna por cima da outra, para ter uma melhor base de sustentação caso elas comecem a tremer quando ele dar início a mais uma sessão de esculhambação sobre os erros que cometi.

— Vamos lá... – ele fala ao mesmo tempo que tira de dentro de uma pasta de plástico um montinho de papel impresso, que imagino ser a versão impressa do nosso trabalho.

— Vamos... – digo, calma como uma brisa de verão.

Ainda que por dentro eu fervilhe como o magma do inferno.

A pior parte de receber uma esculhambação é saber que o esculhambador tem razão.

E, no caso de Marlon Brandão, vai ser exatamente assim.

Quero dizer, já está sendo.

Faz três semanas que ele usa e abusa do seu status de esculhambador e vem me fazendo de gato e sapato só porque eu não tenho experiência nenhuma fazendo trabalhos escolares.

A arte de morder a línguaOnde histórias criam vida. Descubra agora