C A P I T U L O 3

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   A casa dos Mulligan nunca fora tão mórbida naquela época do ano. Era possível prestar atenção em cada pequena mudança do tempo e até mesmo em cada pequeno barulho feito em qualquer cômodo do local, seja por um inseto insistente ou por minha mente assustadoramente perturbada, que recusava-se a descansar um minuto sequer. Holiday Mulligan era um mistério para mim, pois não possuía interesse algum em me falar para onde ia em suas escapadas rotineiras. Não me lembro exatamente do momento específico quando perdi minha mãe e ganhei uma companheira de quarto. Sabia que, ao olhar para aquela mulher, existia entre ela e eu uma ligação materna que nos uniria até o dia em que a última de nós fosse enterrada, mas, ao procurar dentro de mim qualquer laço sentimental que me fizesse pensar em morrer e matar por ela, tudo o que encontrava era indiferença, entretanto, apreço. O tipo de apreço que eu teria por qualquer pessoa disposta a dividir um quarto comigo, nada de especial. 

   A grande verdade era que, estava deliberadamente acostumada a passar a maior parte de meus dias sozinha, presa em pensamentos que me levavam a lugar algum, com a grande certeza de que minha existência possuía SIM um sentido, que eu encontrava apenas quando estava trabalhando na Fun's Coffee. 

   Fun's Coffee fora meu primeiro e único emprego desde que aprendi a trabalhar e servir lanches para desconhecidos que fingiam simpatia ao pedir-me o que eu estava predestinada a os dar, e ali, com a garantia de que eu teria meu próprio dinheiro no último dia do mês e teria pretextos fulminantes para fugir da extraordinária casa dos Mulligan, era onde estava o sentido de minha vida. 

— Posso anotar o seu pedido, senhor? — Digo ao rapaz sentado na última mesa do canto da janela, que, seria exatamente o lugar onde eu sentaria se fosse uma cliente em busca de paz e sossego. A vista era calma e consideravelmente bonita, tendo em consideração a floricultura logo a sua frente e a simpática senhora com cachos grisalhos que parecia estar contente a cada momento do dia, saudando cada indivíduo que por ali passava, afim de tornar seus dias não tão deploráveis. Mas, aquele rapaz não parecia querer essa paz.

— Quero só um copo de café, — ele olha para todos os lados, conferindo cada pessoa presente no local —, e um Croissant, com bastante queijo. — Quando finalmente me encara, posso notar a profundidade do azul de seu olho, e a inquietação em sua expressão me incomoda. Eu conhecia aquela inquietação com uma intimidade que só quem já esteve em momentos de fuga entendia. Decido fugir da ética e sento-me na cadeira em frente ao rapaz, erguendo uma sobrancelha antes de começar a falar. 

— Se está fugindo da polícia, — olho em seus olhos, falando baixo o suficiente para ninguém além dele ouvir —, não seria tão suspeito assim entrar na floricultura aqui ao lado. —Aponto para a senhora do outro lado da rua, que agora estava varrendo a calçada de seu comércio. O rapaz de olhos inquietos tinha sua atenção toda em mim, e agora, existia desdém em toda a sua face. — Honestamente, sei quando alguém está com problemas. Problemas causados por algo que fizeram, especificamente. Mas, por favor, não me cause problemas. Gosto deste emprego o suficiente para chutar sua bunda até a rua caso esteja atraindo quaisquer tipo de conflitos. 

— Moça, eu disse que quero um copo de café. Um grande copo de café. Um croissant com bastante queijo, e você fora daqui. — A rudez em sua sentença faz com que eu dê um meio sorriso com toda a minha ironia. Seu rosto era bonito o suficiente para me fazer ansiar por deformá-lo em meio a bofetadas, mas ainda precisava de meu emprego, e seja lá qual fosse os problemas que ele estava prestes a trazer para meu local de trabalho, eu não exitaria em entregá-lo. 

— Seu pedido é uma ordem, senhor. — Levanto-me da cadeira e entrego seu pedido no balcão, atendendo em seguida os clientes em espera. 

   Desde o começo de minha adolescência, sinto prazer em afirmar convictamente que posso sentir o cheiro de confusão. Fui uma adolescente encrenqueira, afinal. Envolvia-me em brigas pelo puro intuito de proferir palavras tão sujas a ponto de sentir todo o peso de minhas costas voar para os céus e enviar para Deus todos os palavrões que eu conhecia, e a agressão física que eu praticava era apenas um brinde que vinha no pacote. Foram poucas as vezes que me dei mal, pois a experiência ao decorrer do tempo tornou-me uma quase profissional, em consequência, adquiri meios infalíveis de me sair bem de uma enrascada. Sendo assim, também sentia o cheiro de um amador de longe, e ao ver aquele rapaz ainda sentado na mesma mesa no final de meu expediente, concluiu o que eu já sabia: ele estava encrencado e não sabia como escapar. O que me denomina uma quase profissional é o fato de que, não concluí apenas com base em sua permanência ali. Os homens que entraram euforicamente pela grande porta da Fun's Coffee afirmaram com veemência minha teoria. 

— Procuramos por um amigo nosso. — O mais alto dos dois escora-se no balcão, conferindo-me dos pés a cabeça. Ele estava descaradamente olhando cada parte visível de meu corpo, e seu amigo estava distraído o suficiente encarando o rapaz encrencado, que afundara-se na cadeira de modo afirmativo: era quem estavam procurando e tinham quase a certeza disso. - Ele possui olhos azuis, pele clara, cabelos lisos e quase castanhos... — Sua descrição era de alguém que acabara de sair do ensino fundamental e estava aprendendo, de forma desleixada, a escrever redações. — Íamos nos encontrar com ele, mas nos atrasamos. 

— Vou lhe fazer uma pergunta. — Dou uma leve conferida em seu amigo, que ficara calado por todo o tempo e agora tinha a atenção presa em mim. Escoro-me no balcão, ficando cara a cara com o mais alto deles e alterno meu olhar entre os dois. — Quanto ele deve a vocês? Não pode ser muita coisa. Caso ele devesse uma grande quantia em drogas, vocês sequer teriam vindo aqui em uma lanchonete meia-boca procurar alguém para cobrar. — Corro meus dedos pela manga de sua blusa, dando uma breve olhada no rapaz que passara todo o dia escondido covardemente. — Olhem para ele, rapazes. — Seus olhares proferiram pelo rapaz, e em confusão, voltaram para mim. — Ele está ali a horas, como um franguinho apavorado. — Era cômico olhar para o garoto naquele momento, pois mesmo sabendo que havia sido notado, continuava escondendo-se em sua grande jaqueta como se o mundo fosse desaparecer ali.

— Ainda não sei onde quer chegar, coisinha linda. — Ele volta a me conferir, arrancando de mim um sorriso vitorioso. Facilmente manipulado, era óbvio. Profissionais de verdade mandariam alguém para cumprir seu trabalho, e eu os conhecia muito bem para saber como lidar. Conheci tantos ao longo dos anos, que alguns até pararam em minha cama em certo momento da jornada.

— Tenho uma proposta. — Endireito minha postura, elevando consideravelmente meu tom de voz e soando autoritária. — Me digam o valor da dívida dele. Eu pago, vocês nunca mais vendem nada para ele e somem daqui. Não quero mesmo problemas. Este emprego significa muito para eu deixar que um drogado de merda coloque tudo em risco. — E eu sabia que a proposta era sua única escapatória, pois, no fim, todos eles só estavam preocupados com uma coisa: o dinheiro.





Blood Hands (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora