C A P I T U L O 7

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   A palavra 'palermice' possui sinônimos irredutíveis que podem ser interpretados de maneiras amplas, astutas. Ao consultar o dicionário, é possível vê-la sendo relacionada com palavras de espécime semelhante, como por exemplo: absurdo; bestice; bobagem; despropósito; calinada; burrice, e, se parar para citar todas as que conheço, não chegaria ao meu propósito final, que é, repreender a palermice com que se encontra a definição da palavra 'família'. 

   Sou uma jovem com uma alma de longa viagem, que já viu e já fez coisas que Deus duvidaria. Conheci pessoas que mostraram-me o significado de elementos cruciais para a vida do ser humano, e minha família biológica não foi quem me mostrou o significado da palavra. Não quer dizer que sejam pessoas ruins, pois acredito na bondade de cada um de seus corações. Apenas se dá pelo fato de que nunca estiveram prontos para familiarizar-se um com o outro, e eu nunca os condenaria por isso, já que estou no mesmo barco. Entretanto, eu possuía uma família que contradiz o dicionário contundentemente. Suas páginas consistem em empregar que família é um grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto, ou com ancestralidade em comum. Eu adoraria que lá também estivesse escrito que um grupo de idosos carrancudos e com a barriga elevada pelos seus belos anos de cerveja pode sim ser denominado como uma das definições de família. Quem sabe, a principal delas. 

— Ele nunca vai superar, não é? — Earl aproxima-se cautelosamente do balcão onde estou apoiada, apontando seu roliço e curto dedo para Jack, que dançava melodicamente ao som de Ray Charles de maneira tão intensa que quem não o conhecesse bem, pensaria que o pobre velho estava dançando com um dos fantasmas de seu passado, que o deixara uma falta inadmissível. — Quarenta anos se passaram e ele ainda pensa que Hit The Road Jack é uma grande bomba, só por ter seu nome.— Vejo-o balançar a cabeça enquanto olha para o amigo de forma debochada e divertida, arrancando de mim uma risada alta e habitual. Era a risada que era solta somente quando estava naquele ambiente, com aquelas pessoas. 

— Dê um tempinho, Earl, — ofereço-o meu copo de cerveja e quase o amaldiçoo por aceitar —, a vida de Jack não é tão emocionante. Aliás, eu estaria tão feliz quanto ele se meu nome estivesse na música de Ray Charles. — Empurro-o com um de meus ombros e pego meu copo de suas mãos, dando um longo gole na gelada bebida que refrescara todo o meu corpo por quase toda a noite, lembrando-me do banal gosto que o álcool deixava em minha boca. 

   Não ousaria dizer que Earl e Jack eram amigos, ou até melhores amigos. Eles eram almas gêmeas. O tipo de junção que fazia do mundo um lugar diferente. Ao menos em uma pequena parte dele, onde o calor era estridente e o mais pobre dos sujeitos divertia-se e vibrava seu espírito com um bom blues em sapatos gastos e um grande copo de bebida em suas mãos. Era o tipo de junção que causava grande inveja em quem tivesse o privilégio de presenciar, e eu nem mesmo me lembro de um mísero dia de minha vida onde Earl e Jack não foram a melhor dupla que já vi em toda a minha existência, pois sua parceria e cumplicidade iam além de uma vida. O Texas era pequeno para os dois e logo o mundo também seria. Assim pensávamos, com todo o resquício de esperança que nos permitíamos ter em certos momentos de prazer e farra.

— Mamãe foi embora. — Digo alto, competindo com o volume elevado do blues que ainda ecoava por todo o local. Só então percebo que Earl me olhara com pena, e era o único sentimento que eu abominava. E ele sabia disso, pois logo sua expressão mudou para a expressão de alguém que estava prestes a aquecer o seu coração com familiaridade e amor. — Estou bem, prometo. Eu esperava tal atitude. Quase não nos falávamos, é apenas como se ela houvesse saído para dar uma volta a procura de diversão. O que difere é que, desta vez, ela não volta. — Até então, a epifania não havia me atingido. Porém, ouvir minha voz admitindo a minha atual realidade fora como um balde de água fria direto em meu rosto, e meus ombros caíram junto com uma única lágrima teimosa que limpei imediatamente. 

— Ouça, criança. — Sabia que viria um de seus fúnebres discursos. Tratei de dedicar toda a minha atenção para ele. — Sempre soube que dentro de sua casa, não havia espaço para vocês duas. Sua mãe é uma alma perdida, Callie. — A mais dolorosa das verdades era a mais necessária de ser ouvida, e Earl possuía sensatez demais em sua expressão vivida e em suas rugas marcadas pelo tempo. Sua aparência simpática me confortava. — Não tenho dúvidas de que terá sucesso ao se virar por sua conta, sempre fez isso. E enquanto não encontrar uma forma de chegar lá, terá o seu velho para dançar um bom jazz com você pelo tempo que precisar. — Earl me estende sua mão e imediatamente entendo seu recado, sabendo que ali eu encontraria todas as respostas que precisava. 

   Me junto ao meu bom amigo e no meio do sôfrego som de Tony Bennett, dançamos abraçados como um pai deveria dançar com sua filha em demonstração de afeição. Meu pai estava longe naquele momento, tão longe que nem era possível se imaginar sua localização, mas a companhia de Earl e toda aquela massa ao meu redor consolaram meu coração naquela noite, me dando a certeza de que para onde eu fosse, em qualquer momento de minha vida, teria sempre um lugar para onde eu podia voltar e ser consolada da melhor maneira possível. 

   Todo aquele conforto me fora o suficiente para pensar no que fazer em relação a mim e a minha vida, e não tive mais tempo para pensar, pois o alvoroço de uma briga atraiu todos os indivíduos embriagados para os fundos daquela espelunca, incluindo-me no círculo. 

   Socos voavam e gritos de torcida eram exalados por todo o ambiente, me fazendo pensar no vazio predominante na vida de cada um ali, não me deixando de fora, pois a curiosidade havia tomado conta de mim e eu corri para saciar de minha bisbilhotice e talvez torcer para um suposto vencedor em uma briga de bar, que era emocionante demais para simplesmente fingir que não estava acontecendo diante de mim.

— Eu não posso acreditar. — A indignação em meu rosto era evidente quando, no meio do círculo, vejo Luke com o nariz sangrando e seus pés o suportando com uma grande dificuldade. Aquele garoto era imã para encrenca, e eu sabia disso assim que o vi sorrir para mim em grande descaramento e piscando um de seus estridentes olhos antes de receber um grande chute no estômago e cair no chão. Seria de imensa emoção ter uma desculpa para me envolver na situação, e eu sabia que o imã encrenqueiro estava me atraindo para o seu grande e excitante conflito. Callie Mulligan não era o tipo de garota que dispensava uma aventura, e o rapaz não podia estar mais equivocado se achava que me importunaria com sua astúcia. 

Blood Hands (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora