C A P I T U L O 1 3

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O funeral de Earl contou com a mais melancólica sintonia de indivíduos de diferentes classes, etnias e gêneros, fazendo-me imaginar a quantidade de pessoas agraciadas pela breve presença do velho em suas vidas. Imaginei se faziam ideia da sorte que possuíam, pois para estarem ali, eram bons o suficiente para merecer a amizade e fidelidade de Earl.

A beleza da morte é o amor que ela traz a tona, lembrando-nos da importância das pessoas em nossas vidas e do quanto faríamos para mantê-las ali, firmes e permanentes. O grande problema é não percebermos que temos o dever de fazer algo enquanto elas possuem a capacidade de respirar e sentir, com suas almas vivas e estridentes. O grande lado feio da morte é, também, nos lembrar que o amor que ela traz a tona não estava nítido anteriormente, e a pessoa já não está mais ali para ser amada e conservada. Tudo voa pelos ares em um piscar de olhos e o restante consiste em dor e arrependimento.

- Earl foi meu primeiro namorado. - Estive imersa em pensamentos até o momento em que Monica, esposa de Earl, deu início em seu discurso. Sabia que aquele momento seria o mais sôfrego do dia, já que não me lembrava de um só instante em que Monica e Earl não transbordaram seu amor um pelo o outro em qualquer lugar que estivessem presentes. - Ele dizia que não havia a necessidade de construir uma família ao meu lado, pois eu era sua família, - ela abre um breve sorriso, olhando para um ponto fixo como se pudesse o ver ali, parado, observando seu discurso com uma orgulhosa expressão em seu rosto e um brilho no olhar que a faria a mulher mais feliz de todo o mundo pelo o resto de suas existências -, e hoje percebo que ele será minha família até mesmo além da vida. - Monica direciona seu olhar para mim e me passa um olhar de conforto e consolo, como se naquele momento, minha dor valesse tanto quanto a dela e estivéssemos ali apenas uma pela outra, com o único propósito de celebrar a vida de Earl. - E no fundo de minha alma, sinto uma pitada de alívio por não ter o dado a dor que estou sentindo agora. Sei que Earl sentiria a mais ardente agonia em me ver sem vida, e por todo o amor que sinto por ele, prefiro carregar este peso no lugar de descansar para sempre sabendo que o peso estaria em sua alma. - Seu peito estufa em um profundo e doloroso suspiro, soltando lágrimas que pareciam estar ali lutando contra seus olhos para descerem seu rosto abaixo. - Sempre serei sua namorada, querido. - O tom de sua voz é baixo e doce, e meu coração aperta em desejo de estar em seu lugar, carregando sua dor e a poupando de todo o luto.

O dia seguiu com discursos fúnebres e repletos de ardor. O amor que ali emanava era como um abraço apertado em um dia frio e cinzento, e o anúncio de seu enterro fora o bastante para que eu me levantasse de meu assento e deixasse o local com o receio de ver meu amigo deixando o mundo para sempre. O sufoco que me prendia moveu meus pés com veemência e precisão, soltando de mim suspiros pesados e um choro quase desesperado.

Andei pelos cantos da cidade ignorando a dor que possuía meus pés, sendo motivada pelo desejo imensurável de observar cada pedaço de vida ao meu redor. Eram vidas que logo podiam não estar ali, e não queria perder nem um segundo de sua presença por perto.

Há tanta beleza no mundo que ignoramos por procurar sentido em coisas evidentemente insignificantes. A vida acaba passando em um estalar de dedos e nem ao menos aproveitamos os prazeres que ela nos oferece.

Em certo momento da caminhada, meu estômago implorou por minha piedade e precisei lhe dar ouvidos, pois o danado parecia disposto a castigar todo o meu corpo por sua gula insaciável. Arrastei-me até a loja de conveniência mais próxima e pude ouvir gritos de aleluia vindos de dentro de mim ao sentir o cheiro de salgados e doces próximos. Controlei minha vontade de devorar tudo o que meu dinheiro era capaz de pagar e satisfiz toda a fome com batatas fritas e o mais gelado refrigerante dali, sentando-me no pequeno degrau da saída. O posto de gasolina era pouco movimentado, e os raros carros que passavam me faziam amaldiçoar meus pés por não possuírem pneus que me levassem para todos os lugares que eu desejava. O cansaço havia me dominado, e eu sabia disso no instante que encostei minha cabeça na porta e fechei os olhos, pedindo telepaticamente para que o mundo parasse ali mesmo.

- Com licença, senhorita. - Ouvi uma voz familiar, que fez todo o alimento se revirar em meu estômago e quase avançar no indivíduo de frente a mim. Levantei a cabeça com lentidão para conferir de quem se tratava e estremeci ao ver Billy, distraído em seu celular, impaciente demais para entrar na loja. Tratei de o dar espaço e escondi meu rosto atrás do saco de batatas vazio em minhas mãos, correndo para a bomba de gasolina mais próxima o mais rápido possível. O alívio apoderou-se de meu corpo ao notar que não havia atraído sua atenção, mas o desejo de o enforcar ali era tão grande que precisei segurar minha mão, uma na outra, para não cometer o ato final em antecedência. Paciência, era o que eu precisava. A descaração em sua pose confiante mesmo após cometer um terrível crime era o ápice para mim, que naquele momento questionava a força da polícia local e o quanto davam importância para a vida de Earl, morto por suas mãos, que agora seguravam uma garrafa de cerveja e um celular ridiculamente grande. - Te peguei, filho da puta. - Com meu celular, tratei de fotografar diversas vezes o carro em que Billy entrou, focando em detalhes cruciais e em sua placa. O deixaria escapar por pouco tempo, afinal, o relógio estava correndo e seu tempo estava acabando.

Voltei para casa com a maior rapidez utilizada em toda a minha vida, e após revelar cada fotografia obtida naquele dia, investiguei detalhes de seu carro que ficariam presos em minha mente, me dando a capacidade de reconhecê-lo em uma distância consideravelmente alta.

No som, Johnny Cash cantava Ring Of Fire gravemente com sua voz intensa e tocante, me dando o impulso necessário para colocar em minhas malas as roupas que precisaria naquela jornada e objetos que me ajudariam. Cada item ali presente seria necessário para cada passo, que seriam feitos com perfeição.

- Luke, - disse ao celular quando Luke o atendeu no terceiro toque, sonolento e devagar -, estou indo para a sua casa e espero que esteja preparado para ouvir um longo plano. - Digo-o enquanto espalho álcool por todos os cômodos daquela casa, que havia sido um incômodo fantasma em minha vida. A vizinhança era deserta, as casas mais próximas sentiriam o cheiro do fogo em um curto período, mas seria tempo o suficiente para me abrigar por pouco na casa de Luke. - Sabe que ainda tem tempo de desistir, se quiser. Não irei o obrigar a nada. - Por fim, coloco minhas malas em meus braços e paro por um instante na porta da frente, observando aquilo que fora meu abrigo por anos, mas que em breve, não passaria de cinzas.

- Estou levantando de minha cama para escovar os dentes e me preparar para ouvir e colocar em prática seja lá qual for o seu plano, Callie. - Suas palavras arrancam de mim um sorriso, incentivando-me a riscar um palito de fósforo e o jogar no fundo da sala, logo me afastando e observando o fogo apoderar-se dali aos poucos. A satisfação de ver parte de meu passado escorregando por minhas mãos fez com que minha garganta soltasse um grande grito de dor e alívio. O mais alto que já saíra de mim.

Dali em diante, o caminho até a casa de Luke havia sido repleto de cansaço e esforço, com malas pesadas em meus braços e um grande objetivo em mente. A presença que garanti em meu lado trazia alívio, entretanto. Seria uma jornada e tanto e eu não pouparia ninguém que permanecesse em meu caminho.

Blood Hands (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora