Capítulo I

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Está um calor tremendo, as ideias são confusas na cabeça do Júlio! Ao sair do Pingo Doce na Avenida Almirante Reis, encosta-se à parede. Uma turbulência e uma nebulosidade afecta a sua vista e uma dor aguda preenche o cérebro! Há duas semanas que estava sóbrio mas as imagens não lhe saem da cabeça.

"Estaciono o carro, desligo as luzes e tiro a chave da ignição. A noite estava negra e estranhamente a Rua dos Soeiros estava toda às escuras. A chuva caia intensamente e puxei a gabardine para o meu colo. O dia na esquadra tinha sido ridículo, estava cansado de atender os utentes na secretaria e queria passar para o terreno mas o comandante não me deixava! De certeza que anda a embirrar com alguma coisa, se calhar com o facto de ter chamado a atenção pela situação da prostituta assassinada na Alameda! Saí do carro e fechei-o já à porta do prédio. A rua estava deserta, mas o temporal que se abatia sobre a cidade também não convidava ao passeio. Subi até ao primeiro andar e parei no patamar do primeiro andar, na minha porta. Estranhamente a porta de minha casa estava entreaberta e não ouvia qualquer som, nem das minhas filhas Ariana e Lúcia ou da minha mulher, Francesca. Chamei por elas e pelo meu cão Chewie, mas ninguém respondeu. Meti a mão ao interruptor mas as luzes também não respondiam. Mal entrei no corredor ouvi-se um trovão e passado poucos segundos um relâmpago deu uma luz imensa ao apartamento. Uma trovoada imensa entrou pela escuridão da noite. Entrei enquanto continuava a chamar por elas quando tudo me cai ao chão... eu próprio caí de joelhos no chão! As lágrimas vieram-me aos olhos enquanto gatinhava para a minha família... todos em linha direita ao longo do sofá, no centro da sala, deitados no chão. Aproximei-me deles enquanto as lágrimas escorriam-me pela cara e tentava perceber o que se tinha passado. As luzes da rua acenderam-se mas as de casa continuaram apagas. Ao chegar ao pé da minha família vi-as mortas, assassinadas: dois tiros no peito e um na testa, sem qualquer piedade. Chewie encontrava-se debaixo da mesa de jantar com um tiro no peito! Ouvi um barulho por detrás de mim e ao virar-me só vi um vulto, de seguida levei uma pancada na cabeça e apaguei por completo..."

Um ano depois, já depois de ter estado uns meses de baixa, Júlio já tinha deixado a polícia. Para se tentar manter ocupado decidiu ser detective privado mas não tinha muita clientela, pois ele próprio também tentava evitar ter clientes. Tinha o escritório para ter um pretexto para sair de casa e poder dedicar-se ao alcóol. Após uns tempos, teve sorte que o seu amigo Heitor o encontrou em coma alcoólico e a tempo de recuperar totalmente no Hospital de Santa Maria. Sem muita vontade de viver foi recuperando e conseguiu manter-se sóbrio por duas semanas, enquanto que frequentava reuniões diárias e ia às consultas com uma psicóloga de três em três dias. Sentia-se efectivamente melhor mas havia alturas que sentia que precisava de algo, embora fosse resistindo. Antes do acidente que o deixou em coma alcoólico vendeu a sua casa por meia dúzia de tostões e comprou um pequeno apartamento na Brandoa, o suficiente para ele. Guardou algumas recordações da sua família, fotografias e algumas jóias da Francesca e passava as noites a olhar para tudo, a tentar compreender o que se passou. A investigação foi inconclusiva e não se prenderam suspeitos nem houve qualquer julgamento. Júlio ia sobrevivendo miseravelmente com umas poupanças que tinha juntando no Banco com Francesca, fruto das horas extraordinárias que exercia na esquadra a arquivar papel e dos projectos de arquitectura da sua mulher.

Depois de ganhar novamente poder aos seus sentidos voltou a iniciar a marcha e ao entrar na estação de metro de Arroios o seu telemóvel tocou. Uma vez feminina, rouca e sensual, a denotar alguma idade chamava pelo seu nome:

- Sr. Júlio Branco?

- O próprio. Com quem falo?

- Fala Eunice Antunes, preciso de falar urgentemente consigo. Tenho algo que lhe interessa...

- Minha Senhora, neste momento não estou a aceitar casos e nem há nada que me interesse. Peço desculpa mas terá que recorrer a outro colega meu, ok? Boa tarde e obrigado.

Quando Júlio ia desviar o telemóvel do seu ouvido ficou estupefacto com o que ouvio por parte da Eunice:

- Não desligue Sr. Júlio, o que lhe quero falar pode ter a ver com a morte da sua esposa e das suas filhas. Ajude-me e também se poderá ajudar a si.

Longos segundos de silêncio interromperam a chamada telefónica enquanto que a respiração do Júlio se tornou ofegante e o coração começou a bater mais forte.

- O que é que a senhora sabe sobre a minha família? Não admito que brinquem com ela, exijo respeito e ao mesmo tempo descrição. A minha vida pode estar terminada mas não quero areia para os olhos nem histórias da carochinha!

- Tenha calma Sr. Júlio, posso contar-lhe alguns pormenores e tenho alguma documentação que consegui reunir e gostava de lhe mostrar tudo. Vai querer a sua vida de volta e lutar pela verdade com unhas e dentes!

- Muito bem, estou disponível para a ouvir, mas se vir que me está a intrujar vai sofrer as consequências - disse Júlio de uma forma intimidatória, ao mesmo tempo que algumas lágrimas lhe vinham aos olhos.

- Apareça no Jardim da Estrela, perto do coreto. Em frente às escadas desse coreto tem uma mesa e bancos de pedra, aguarde por mim dentro de uma hora e meia.

- E como é que a reconheço? - questionou Júlio perante o conhecimento do ponto de encontro.

- Não se preocupe, eu encontro-o. Até já Sr. Júlio, não se atrase, eu própria também quero ver este assunto resolvido com urgência.

Após a chamada terminada Júlio ficou a olhar para o telefone à procura do número, mas a chamada tinha sido feita anonimamente. Só restava agora apanhar o metro e o autocarro até ao Jardim da Estrela, tentar perceber o que ninguém tinha entendido sobre o massacre da sua família!

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