Capítulo IX

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A chuva caía intensamente e sem dar sinais de abrandamento, o vento não amainava e as árvores tremiam com uma fúria tenebrosa. A corrente da ribeira arrastou Júlio até uma pequena clareira em local desconhecido. A sangrar da testa, com o sangue a escorrer pela face e a manchar a roupa, arrastou-se pela lama e pela relva fora, perdendo novamente os sentidos. Um trovão forte despertou Júlio e com muita dificuldade colocou-se de pé. Cambaleou até uma árvore e segurou-se a ela para ganhar forças e consciência do que estava a acontecer. Começou a ouvir vozes do outro lado da clareira e escondeu-se atrás da árvore, colocando a cabeça subtilmente e de forma a espreitar discretamente.

Os vultos em trajes de monges voltaram a aparecer à sua procuram, vasculhando a ribeira e o local por onde Júlio tinha saído.  Reuniram-se em círculo e pousaram os seus cajados mágicos na água. Em seguida deram as mãos e gritaram de forma morrendo, até sair um raio de luz esverdeante em direcção ao céu, e ser apanhado por um relâmpago. Uma explosão de luz acompanhou o som de um novo trovão chegando Júlio durante alguns segundos. Voltou a espreitar sorrateiramente mas os monges desapareceram. Uma pequena nuvem de fumo saía do centro da ribeira e com atenção redobrada dirigiu-se ao local. "Como é que pode sair fumo da água?", questionou-se com aquele estranho fenómeno.

Avançou mais uns passos até à ribeira e reparou num pequeno medalhão em cima de uma pedra saliente no meio da água. Molhos novamente os pés e as pernas e a medo tocou no medalhão, a tentar perceber a sua temperatura. Após lhe tocar este deixou de deitar fumo, brilhou durante alguns segundos e voltou à sua cor natural, de um dourado baço. Apanhou-o e observou com atenção: era feito de latão, tinha uma rosa no meio e estava rodeada por um cordão cheio de espinhos. No seu verso estava gravada uma adaga.

Vindo do nada, do lado de onde tinham vindo os monges começou a ouvir um misto de risadas infantis com um choro de bebé. Um vento frio levantou-se que até ficou arrepio.

Decidiu ir embora no sentido contrário e após alguns metros deu com uma estrada de alcatrão, por onde tinha passado quando se dirigiu ao hospício. Não foi difícil encontrar o carro e regressar, mas iria pernoitar numa pequena pensão em Terras de Bouro. Precisava de observar e analisar o sucedido e regressar a Lisboa nesse mesmo dia era cansativo face aos recentes acontecimentos.

A Pensão Hortência ficava numa pequena transversal que ia dar à Praça do Município. Não se via ninguém na rua e Júlio tinha sido recebido atenciosamente por uma senhora já com alguma idade, possivelmente a própria Senhora Hortência, não se recordava já bem da conversa simpática que tinha tido quando deu entrada no estabelecimento. A pensão só tinha cinco alojamentos e parecia-lhe ser o único hóspede, pois não havia mais qualquer carro estacionado nem ouvia mais barulhos nos outros quartos. Despiu a roupa molhada e foi tomar um duche rápido, mas quente. Tratou melhor a ferida que tinha na testa e ficou contente de não ter ficado com nada partido. Três batidas secas bateram na porta e Júlio ficou contente de a Senhora Hortência lhe ter levado uma sandes de leitão com um copo de cidra de maçã. Comeu sofregamente a sandes e quase de um trago só bebeu todo o conteúdo do copo.

Dirigiu-se ao roupeiro e do casaco ainda molhado tirou do bolso interior o caderno que tinha encontrado no hospício e o medalhão. A capa estava encharcada e as folhas um pouco molhadas, mas com todo o cuidado abriu o caderno. Na primeira página vinha uma identificação e a data:

Maria de Lurdes Adelaide, nascida a 1 de Agosto de 1901. Profissão: aprendiz de enfermeira.

As primeiras entradas datavam de 1923 e referiam-se aos seus primeiros dias no hospício:

«1 de Setembro de 1923: Terceiro dia no Hospício! Fui lindamente recebida, inclusivé fizeram-me um bolo! Somos duas aprendizes de enfermeiras, duas enfermeiras séniores, um médico, uma cozinheira e o director. São 14 pacientes para nós todos e ainda estou no início. A maior parte do tempo estão nos quartos e ainda não fui permitida a entrar neles, faço pequenas tarefas de limpeza. É noite e os pacientes estão agitados, mas  não posso fazer nada. Eu e a Aurora (a minha colega aprendiz) não estamos permitidas a sair do quarto após as 19.30, ordens do Director Artur. Diz que é para nossa própria segurança, só as enfermeiras Marlene e Felisbela podem sair, e acho que vem sempre duas pessoas de fora auxiliá-las pois vi dois monges a chegarem e sairem no dia seguinte bem cedo. No entanto, e diversas vezes durante a noite ouvi gritos vindos dos quartos dos pacientes, que até afligem os mortos! A Aurora também os ouviu e questionou o Doutor Rodrigo, mas este foi rude na resposta deixando-a na ignorância. De resto, as pessoas são simpáticas e acolhedoras».

Júlio folheou a página seguinte e continuou a ler o diário...

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