Capítulo 1

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    O burburinho agitado dos estudantes parecia aquecer o interior do trem que seguia apressado em direção a Londres, um bom contraste para as paisagens geladas e úmidas de um final de tarde de outubro que anunciava a chegada do inverno no clima europeu. Conversando animadamente em pequenos grupos sobre as duas primeiras semanas de aula ou imersos em contos de ficção de autores estrangeiros, ou até mesmo lendo pesados livros de aritmética, história contemporânea ou genética médica, os alunos da renomada Universidade de Oxford aproveitavam os trinta minutos restantes da viagem de retorno para o fim de semana das formas que mais pareciam-lhes convenientes.

    Ocupando solitário um dos assentos duplos situados do lado esquerdo do corredor do trem, um jovem alto curvava-se desajeitadamente sobre um caderno de desenhos apoiado sobre seu colo e bagunçava cada vez mais os cabelos castanhos claros enquanto tentava, sem grande sucesso, evitar com que sua franja entrasse em seu campo de visão. Utilizava uma caneta de ponta extremamente fina para desenhar os contornos de longas mechas volumosas que caíam sobre um rosto feminino delicado, buscando retratar no papel com a máxima realidade a figura da moça que observava tranquila as casas dos vilarejos sendo transformadas em borrões pela alta velocidade com que o trem as passava.

    Uma gargalhada alta fez com que o jovem interrompesse sua atividade em um sobressalto e escondesse às pressas o caderno sob o livro no qual o apoiava, temendo a possibilidade de estar sendo observado. Por sorte, ela pertencia à garota negra sentada junto à janela do lado direito do trem, que ria de algo acompanhada de outras três colegas, inteiramente alheia ao que ocorria a poucos metros de seu assento. Muito tentado a manter o olhar sobre aquela que tanto lhe chamava a atenção pelo resto da viagem, mas receoso de ser notado enquanto em sua contemplação, ele optou por baixar os olhos ao desenho dela em suas mãos e não pode conter um sorriso triste, porém carinhoso, de contentamento.

    Newt Scamander cursava o quarto e último ano de zoologia na Universidade de Oxford e dedicava-se, em quase todo o seu tempo, a catalogar e coletar informações sobre as mais variadas espécies de animais encontradas no Reino Unido. Seu objetivo particular era escrever e lançar um livro sobre esses animais assim que terminasse sua graduação, a fim de conscientizar a população sobre a importância de preservar todas aquelas espécies e seus habitats ao invés de exterminá-los, e sentia-se muito tentado a passar o resto de sua vida em trabalhos de campo para cuidar e observar de perto as espécies ao redor do mundo. Era um jovem incomum, caracterizado por muitos como excêntrico. Um tanto tímido, não fazia amigos com facilidade e poderia ser sempre encontrado sozinho por onde andava. Não que ele se importasse. Em verdade, preferia estar em contato com animais mais do que pessoas pela falta de jeito que levava para interações com elas e pela falta de paciência e esmero com que costumava ser tratado.

    Pesadas gotas de chuva ricochetearam nas janelas de vidro do trem, chamando a atenção dos estudantes que logo se apressaram em guardar seus pertences de volta em suas bagagens. Logo menos estariam chegando à capital.

    Assim que o trem alcançou a plataforma e a massa de estudantes ansiosos se dispersou das portas, Newt levantou-se e fez seu caminho para fora. Estava no grande saguão da Estação Paddington de Londres outra vez, havia feito a metade da viagem de volta para a casa de seus pais. Checou seu relógio, faltavam quinze minutos para a partida do trem que o levaria até Canterbury. Por baixo da longa franja de cabelos bem crespos arriscou um olhar para o grupo de garotas que caminhavam descontraídas pelo saguão principal em direção à saída da estação, seu foco fixo na silhueta pequena e esguia da menina que gesticulava animadamente. Perguntava-se mentalmente se algum dia, por ironia ou boa graça do destino, teria a oportunidade de falar com ela.

    A viagem de Londres a Canterbury sempre costumava ser mais demorada e menos movimentada do que a anterior pela ausência dos muitos alunos da universidade e Newt estava acostumado com a escuridão da eminência da noite através das janelas de vidro que o acompanhava durante todo o trajeto. Retirou de sua bolsa o caderno no qual escrevia o manuscrito do livro que pretendia lançar, disposto a utilizar os noventa minutos da viagem prestes a ser iniciada para desenvolver um pouco mais o capítulo dedicado aos roedores britânicos.

    Uma movimentação rápida atraiu sua atenção para o assento à frente do seu, separado apenas por uma estreita mesa entre eles, que agora era ocupado por uma garota que procurava nervosamente por algo em sua bolsa. Era muito pálida, ou parecia estar devido à sua aparente apreensão, e possuía os cabelos lisos bem escuros e curtos, bastante desnivelados por sua agitação. Newt teve a sensação de que sua fisionomia era familiar e buscou alguma memória em que eles possivelmente teriam se encontrado pela cidade de Canterbury, mas não obteve sucesso. Ainda que estivesse de frente para ele, a garota pareceu não perceber ou se importar com a presença de Newt, que retornou sua atenção para o papel em seu colo, procurando não ser mais um agravante para a inquietação da passageira.

    Pouco mais de uma hora e vinte minutos após a partida da cidade de Londres, o painel do trem anunciou os minutos finais da viagem aos seus ocupantes e Newt deu-se por satisfeito ao reler o parágrafo sobre esquilos vermelhos que acabara de escrever uma última vez antes de guardar definitivamente o caderno em sua bagagem.

"Graças a Deus você atendeu minhas ligações!" - Newt assustou-se ao ouvir a voz feminina da garota sentada à sua frente soar subitamente alta, carregando um tom de preocupação que contrariava o significado da frase sibilada - "Acabei de conversar com ela. Por Deus, Queenie! O que estava pensando? Sabe em que confusão você nos meteu?"

    Oscilando entre semblantes de preocupação e ira, a garota parecia absorver quaisquer que fossem as palavras a ela direcionadas pelo outro lado da linha. Newt preocupou-se em não observar longamente seu rosto angustiado, sentindo muita compaixão pela aparente "confusão" que estaria tomando sua paz.

"Todo o cuidado do mundo seria pouco, Queenie! Você sabe como ela é rígida para as regras!" - a garota soltou um suspiro resignado, interrompendo seu sermão irritado. Parecia não enxergar nada além dos próprios pés enquanto dedilhava impacientemente o zíper da bolsa em seu colo - "Ela disse que quer conversar conosco ainda hoje, logo quando eu chegar, o que não deve demorar muito..." - outro suspiro tão resignado quanto o primeiro, seguido por uma longa pausa. Os olhos da menina pareciam estar marejados - "Se ela tiver certeza de que os viu, será o fim para nós!"

Newt observou a paisagem familiar da Estação Oeste de trens de Canterbury aparecer na janela de vidro ao lado de seu assento. Uma chuva consideravelmente forte caía sobre a pequena cidade britânica, acompanhada do tradicional clima frio e úmido de final de ano. Buscou por seu guarda-chuva no interior da mochila, depositando alguns livros sobre o banco vago ao seu lado para facilitar sua visibilidade entre os muitos frascos e pequenos instrumentos de observação guardados entre as divisórias da bolsa.

    Pela visão periférica notou um pequeno objeto cair ao chão ao lado do par de botas da garota ao mesmo tempo em que ela dirigia-se apressada para as portas já abertas do trem. A garota ainda falava ao telefone quando bravamente se lançou sob as pesadas gotas de chuva que caíam sobre a plataforma descoberta da estação, completamente alheia aos chamados do menino e ao objeto deixado para trás, desaparecendo de vista rapidamente. Em um movimento muito rápido e desajeitado, Newt colocou de volta os livros dentro de sua mochila, momentaneamente esquecendo do motivo pelo qual os retirara de lá, e coletou o objeto do chão em um impulso, saindo em disparada para fora do trem.

    Muito mais pesada do que ele poderia esperar, a chuva dificultava a visão daqueles que pretendiam enxergar pouco mais longe do que dois metros de distância ao seus arredores, e não restaram alternativas outras para o garoto além de correr para a estrutura coberta da entrada da estação.

    O saguão de entrada continha uma quantidade razoável de pessoas aguardando por conhecidos que estavam por chegar ou por um momento de trégua da tempestade para enfim deixarem a estação em segurança, mas Newt não reconheceu o rosto feminino que buscava em nenhuma delas. Quando deu-se por vencido em sua missão, acomodou-se em um dos bancos vagos que ali encontrou, instintivamente apertando o objeto em suas mãos com um pouco mais de força. Tratava-se de um crachá de identificação para funcionários de uma livraria localizada no centro da cidade de Canterbury, composto pelo nome e por uma pequena foto do rosto da pessoa a quem ele pertencia.

    Enquanto esperava que o táxi que o conduzia à casa dos pais chegasse ao destino naquela noite de sexta-feira, o garoto lançava olhares distraídos para o objeto em suas mãos, alternando demoradamente entre o nome da livraria, a imagem de uma jovem com cabelos curtos e bem escuros que sorria para a câmera timidamente e o nome que jazia ao lado dela:

                                                                  Porpentina E. Goldstein.

The 5's RomanceWhere stories live. Discover now