-Por que você fica? - Russel perguntou-me abruptamente.
Encolhi em volta de mim mesma e me empertiguei na poltrona.
-O que você quer dizer? - Sussurrei. Eu sabia exatamente o que queria dizer.
-Por que você fica, Andressa? - Ele cruzou as pernas e balançou sua taça de vinho. - Por que você fica com ele?
-Eu não...
-Por que você continua ficando com ele sabendo que ele ama outra pessoa? Por que você ainda o mantém por perto?
Parei alguns segundos para pensar. Passei as mãos pelos cabelos só para ter com o que ocupá-las.
-Primeiro que ele mora comigo. - minha voz soava incerta, como se eu procurasse aprovação, não como alguém que precisava defender sua tese. - E ele está ali e além do mais é só se...
-Nao ouse dizer que é só sexo. - Ele inclinou-se para frente, colocando a taça na mesa ao lado de sua poltrona. - Você pode mentir para si mesma, mas para mim não. Como você pode dizer que é só sexo? Você sabe que não é. Você gosta dele e isso está explícito no teu olhar, no modo como fala dele. Até quando você vai continuar tentando se enganar assim? Andy, você sabe que quanto mais você tenta ser a menina fria e desapegada, mais teu peito se entrega sem pedir permissão.
Russel estava inquieto, agitado. Se levantou e começou a andar em círculos pelo carpete vermelho escuro, um tanto empoeirado.
-Eu...
Enquanto Russel demonstrava ter toda a energia disponível naquele momento, eu era o seu oposto. A cada palavra e gesto dele, eu me encolhia mais. Estava tão fundo naquela poltrona que achava que seria difícil me levantar depois.
-Eu gosto da companhia dele. - Comentei com dificuldade em focar minha atenção. - Gosto de ficar com ele. De beijá-lo, de trocar carinhos. Eu gosto de estar por perto quando ele precisa. Gosto de sentir que cuido de alguém e que sou cuidada de volta. Eu gosto da sua carne, das mãos grandes e dos ombros largos. Gosto do sexo e das conversas. Eu...
Sentia-me tonta, como se as forças tivessem se esvaindo do meu corpo. Eu não queria falar sobre isso, não queria pensar sobre o assunto, por que Russel estava me cobrando isso? Por que ele simplesmente não me deixava a mercê de mim mesma e observava enquanto eu quebrava minha cara...? Outra vez...
-E isso te basta? - Ele parou de costas para mim, observando seu velho piano parado no canto da sala.
-Como assim? - Balancei a cabeça perdida.
-O sexo, o toque, o carinho basta para fazer você se apaixonar?
Não respondi, ao invés disso, voltei meu olhar para minhas mãos que brincavam com os pelos das minhas pernas. Eu podia sentir meus músculos tensos, meus ombros rangiam em protesto apenas por ter de sustentar minha cabeça. Eu me sentia pesada, esgotada tanto física quanto emocionalmente. Eis a maneira de meu corpo de dizer que não importava o quanto eu ignorava uma situação, ela ainda me afetava diretamente.
Observei Russel. Ele tinha se sentado no banquinho empoeirado do piano, fazia anos que eu não o via tocar, porém sabia que ele sempre mantinha o instrumento afinado.
-E por que você fica, Russel? - Minha voz saiu antes que eu tivesse consciência de que a pergunta se formava em minha mente.
Ele parou a meio caminho de uma nota e virou-se para mim com um olhar intrigado.
-O que quer dizer? - Perguntou, mas eu sabia que ele sabia o que eu queria dizer.
-Por que você ainda fica? - Lancei-lhe um olhar de desafio. - Por que ainda permanece do lado de alguém que gosta de outra pessoa?
Percebi seu olhar vacilar e me surpreendi com o poder que eu tinha sobre ele. Russel não era o tipo de pessoa que vacilava sob o olhar de alguém, nem era o tipo de pessoa que deixava de responder algo, sempre tivera a resposta para tudo na ponta da língua. Eu que o conhecia muito bem, tinha certa dificuldade de detectar incerteza em suas atitudes, eu sabia que usava o deboche e sarcasmo as vezes quando era pego desprevinido, mas jamais tinha o visto ficar sem fala.
Portanto, ali estava ele. Sentado no banquinho do piano, com o tronco voltado para o lado e o olhar perdido em minha direção. Por que ele ficava? Por que ainda permanecia? Eu queria a resposta dessa pergunta tanto quanto ele. Podia ver as engrenagens de seu cérebro tentando entender seus sentimentos, tentando organizar seus pensamentos para, então, poder sorrir e me dar uma resposta inteligente.
-É mais dolorido quando a espada está apontada para nosso peito, não é? - Falei descruzando as minhas pernas e pegando a garrafa de vinho sobre a estante ao lado da lareira.
Eu não era a maior fã de vinho, achava o gosto um tanto áspero, mas tomei alguns goles direto do gargalo da garrafa; meu corpo me dizia que aquilo era o que eu precisava naquele momento. As vezes devemos confiar nos nossos instintos físicos, nem tudo tem a ver com sentimentalismos.
Passei os dedos pela lombada dos livros sobre a prateleira da estante enquanto Russel apenas me observava, cheguei a conclusão que já estava na hora de eu ir embora, entendi que não encontraria as respostas para minhas perguntas aquela noite. Agarrei a alça da minha bolsa e me dirigi rumo a porta, o vento da rua assobiou entre o batente quando ouvi a voz vacilante daquele que jamais vacilava.
-Esperança. - Disse Russel.
Virei o pescoço em sua direção e o vento soprou meu cabelo sobre meu rosto, me fazendo enxergar apenas retalhos de seu blazer aberto sobre a camisa abarrotada. Ele parecia bonito entre os fios dos meus cabelos, embora ele estivesse igual a todas as outras vezes que o olhei. O que faz a beleza de uma obra não é o autor, mas sim os olhos de quem vê.
-O que me faz ficar é a esperança. - Ele repetiu, se levantando do banquinho do piano e dando dois passos em minha direção, daquele seu jeito fino, como quem anda em um lago congelado. - A esperança de que você um dia note que eu estou aqui. Que note as coisas que faço para que você perceba que é confortável ficar. Como o carpete vermelho felpudo que eu tenho vontade de arrancar porque faz meu nariz coçar, mas lembro que é nele que você corre para deitar quando tudo dá errado. E no fato de que eu odeio café, mas sempre compro café quando vou no supermercado porque sei que você adora. Esperança de que um dia tu perceba que eu li os livros do Nicholas Sparks para ter algo sobre o que conversar contigo, porque tu sabe que a literatura que eu gosto tem mais a ver com as crises existenciais de Nietzsche. Eu fico porque tenho a esperança de que um dia tu não queira mais ficar em outros lugares e descubra o teu lugar em mim, que você perceba tudo isso e um dia também queira ficar por mim.
O observei se agitar enquanto falava, colocando as mãos na cintura e as tirando novamente. Seu cabelo acinzentado estava perfeitamente intacto, como sempre, exceto por uma mecha que lhe caía aos olhos. Um misto de sentimentos se apoderou de mim enquanto eu o ouvia palestrar sobre todas as coisas que eu não sabia, ou ignorava de propósito. Pude sentir meu peito remexer de uma maneira conhecida, do jeito que sempre remexia quando eu deitava no carpete vermelho felpudo e ele se sentava ao meu lado, mexendo no meu cabelo.
Ele estava em silêncio, seus olhos cinzas imploravam uma resposta, uma atitude que talvez eu não pudesse despertar tão fácil assim, pois apesar de querer ardentemente, eu ainda tinha medo. E meu coração ainda teimava em ficar por outra pessoa, talvez nem fosse por amor, apenas por carência e teimosa, talvez apenas para esconder o que existia e me ajudar a ignorar o que brotou dentro de mim, mas que agora, eu percebi, floriu sem ser regado.
Fechei a porta lentamente, pendurei minha bolsa no cabideiro e caminhei até o centro da sala, me sentando no carpete vermelho felpudo, deixando minhas mãos deslizarem por aqueles pêlos escarlate.
-Eu também sempre odiei esse carpete. - Falei, com meio sorriso entre os lábios. - Mas sempre gostei do cafuné.
Ele soltou uma risada e veio se sentar ao meu lado, passando os dedos pelos fios embaraçados do meu cabelo, desembaraçando-os com uma paciência que eu nunca teria.
-Você não tem de voltar para casa? - Ele perguntou.
Dei de ombros.
-Talvez hoje eu fique.
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Contos de uma adolescente problemática
Short StoryAs vezes meia dúzia de bitucas do cigarro numa poça de água suja falam mais do que um livro com 1000 páginas de puro romantismo irreal. Para uma adolescente que acha que já viveu coisas demais para tão pouco tempo de vida, palavras no papel não si...