Capítulo III - Velhos Amigos - Parte 1

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Um mês havia se passado. Agora, liberto pelo rei, o cientista via seu feixe de esperança aumentando. Enfim, podia continuar fazendo o que sempre amou sem ser perseguido — mesmo que ouvisse os mesmos julgamentos de antes, ao menos tinha a proteção do imperador —. Ainda em parte atordoado com os últimos acontecimentos, acreditava estar vivendo em um sonho. Enquanto ao templo, onde eram levados todos os feridos do reino, devia se aproximar dos religiosos, cumprindo o acordo feito ao tribunal. Ele não encarava isso como algo ruim; ainda cético para divindades e magia, compreendia as crenças como um meio que as pessoas tinham para se fortalecerem enquanto viviam com as baixas da guerra vinda de todas as direções. Agora o médico tinha o seu próprio escritório dentro dos muros do castelo por ser um membro real. Aos poucos, enchia as prateleiras com livros — claro que todos tinham a vistoria do imperador que, com as provas que tanto esperou, tinha mais tolerância ao assunto —. O cientista não podia mais voltar para seus esconderijos espalhados pela cidade, com um voto de confiança, selou ao seu superior o sigilo sobre a localização de cada um deles. Estava afastado de todos os membros da irmandade que fazia parte; não podia esquecer de seus velhos amigos mas, com toda a vigilância que tinha, era impedido de voltar. Sentia falta de seus companheiros. Mesmo que, em todas as suas memórias, existisse a perseguição do império, ao qual se aliou por um bem maior. Inúmeras vezes, se pegou pensando em como seus amigos estariam; sem suas notícias, podiam acreditar que o pior acontece a ele. Mas, de certa forma, tudo parecia estar se concertando, mesmo que devagar.

Um por vez, os doentes chegavam ao templo da cidade. Os que antes estavam propensos a tratamentos com ferramentas esdrúxulas e de forma impiedosa, mantendo a vaga esperança de sobreviverem, agora eram cuidados; melhorando a cada dia que se passava até que se recuperassem por completo. A maioria dos religiosos não odiavam o novo membro, pelo contrário, o tratavam como igual. Ainda que mantivesse uma máscara sobre as cicatrizes em seu rosto, ele retribuía cada novo sorriso que recebia, mesmo que vissem apenas um dos lados de sua face. Mesmo que os soldados o encarassem todas as vezes que o viam, o ameaçando com os olhos, ele não se sentia engaiolado. Depois de muitos anos, o cientista pôde sentir novamente como era fazer parte de uma família.

Ainda com todo o trabalho, agora feito durante mais tempo ao dia e, em parte sozinho, o médico não pôde perder seus velhos hábitos de defesa armada, como lhe foi ensinado por um de seus antigos companheiros. Muitas das vezes que se prendia em seu escritório, empenhava-se em treinar seu corpo e espada. Sua lâmina mantinha-se guardada em um compartimento abaixo das prateleiras, escondido até mesmo dos olhos do rei, para um possível conflito futuro. Não podia se deixar dependendo apenas dos soldados; alguns estavam lá para "protegê-lo", mas ele não acreditava nisso. Seus extintos de autoproteção estavam vivos, como sempre estiveram desde quando era uma criança.

Nesses dias em que cuidavas dos feridos, o cientista observava mais um paciente. Ele chegava em uma maca, trazida por quatro soldados. Via de longe os cavaleiros conversarem com os anciões. Atentava-se para ouvi-los; não conseguia conter a sua curiosidade. Ao que os soldados se retiraram, o jovem se aproximou de seus novos companheiros. Educadamente, assumiu os cuidados do doente, deixando seus aliados se encarregarem de outros enfermos em estado mais leve. O cientista sentou em um banco ao lado do leito. Sem observar muito o enfermo, compreendendo qual seria o problema a ser tratado, dirigiu sua atenção aos objetos sobre um pequeno móvel, e iniciou uma amigável conversa para aliviar a atenção do outro.

— Como você está se sentindo hoje? — questionou com a voz calma.

O doente abriu um poco os olhos, mantendo sua visão para baixo.

— Me deixe morrer em paz. — respondeu com peso em suas palavras — Não piore como estou.

— Não será hoje que vai morrer. — sem se preocupar com a ofensa do ferido, o cientista apenas falou mantendo o seu tom — Você apenas está febril.

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