Quimerismo

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Pietra nunca tinha beijado alguém de verdade. Ela tinha dado um selinho num garoto da sétima série uma vez, mas nunca passou disso. Em suas divagações sonhadoras, a jovem costumava imaginar Dominic levando-a para um piquenique perto de um lago. O rapaz negro então a tomaria em seus braços romanticamente e lhe aplicaria um beijo extasiado que levantaria seu pé direito para trás. 

E depois, claro, ambos fariam amor, com direito a todas as posições do Kama Sutra que Pietra conhecia (porque é pra isso que o Google serve, né). Mas por causa de um brutamonte qualquer, todos seus sonhos viraram pó.

O tal de Matthew era mais alto que a garota de óculos retangulares. Seu corpo era bastante definido e combinava com a camiseta do time de rugby que ele estava usando. Tinha cabelos loiros, curtos e espetados. Várias sardas sarapintavam as bochechas, mas nada que lhe roubasse sua beleza rústica. Uma barba dourada e mal feita cutucou o rosto mulato de Pietra. Se ele tivesse sido menos brucutu, a jovem com mechas roxas no cabelo preto até poderia ter se sentido atraída pelos olhos azuis dele. Agora, tudo o que a adolescente sentia era desprezo e nojo.

A língua do brutamonte violou a boca de Pietra enquanto, forçadamente, ele a tomava nos braços. Foi uma das piores sensações que a estudante teve em seus dezessete anos. Ela sentiu vontade de liquefazer-se e escorrer para o ralo mais próximo. "Embaratar-se" e ser pisada por alguém. A garota tentou resistir, empurrando o rapaz, mas a força dele a sobrepujou tal como um gorila faria com um mico-leão-dourado. 

Apesar de irracional, a jovem sentia como se todos na boate de repente estivessem olhando para ela e rindo de sua impotência. Os segundos daquele beijo lhe pareciam intermináveis. O calor das lágrimas já se assomava nos olhos...

Até que Matthew foi arrebatado. Uma mão extremamente poderosa içou o rapaz dali, desgrudando-o de Pietra com tal veemência que ela poderia jurar que o cara foi erguido por um guindaste. Quando ela deu por si, Matt estava no chão, desnorteado, enquanto uma garota estava de costas na frente dela. 

Era Kashvi, interpondo-se entre os dois, olhando ferozmente para o adolescente e seus comparsas com a mesma camisa de rugby. Naquele momento formou-se uma roda de expectadores curiosos, que também ficaram surpresos com a força da jovem de pele morena e moicano roxo.

Os olhos caramelo de Pietra procuraram por Louise na multidão, mas sem sucesso. O Inferno era enorme e ela poderia estar em qualquer lugar. Enquanto isso, a indiana de blusa jeans rosnou para os garotos:

— Homens! Não importa quantos séculos se passem, vocês são sempre os mesmos! É melhor vazarem daqui, seus lixos!

Victoire ficou apreensiva. Sabia que o ex e seus comparsas eram bem violentos e não costumavam lidar bem com provocações. Os colegas de Matthew, um cara gordo e forte e o outro um sujeito esticado e alto, deram risada da ameaça da garota e estralaram os punhos. Instigado, o rapaz loiro levantou-se tal como uma erupção, as veias saltando na vermelhidão do rosto enraivecido. Ele deu dois passos à frente e encarou os olhos verde amarelados de Kashvi, invadindo seu espaço pessoal. Bufou, todo empertigado:

— Quem você pensa que é, garota? Hein?! Sua vadia!

— O que foi que você disse?

Kashvi então sorriu para ele. De repente, apareceu uma rachadura no centro de sua testa. Garras perfuraram a cabeça da indiana de dentro para fora, quebrando o crânio e rasgando a carne. Litros de sangue cálido espirraram na face de Matt, que entrou em choque quando viu mãos verdes abrindo a cabeça da adolescente como se fosse uma casca. De dentro, ergueu-se um pescoço longo e escamoso, banhado em sangue e pus borbulhante. 

Um cheiro acre, de enxofre e de decomposição, nauseou o rapaz, que ficou paralisado. Na ponta do pescoço, Matthew viu um focinho bulboso que se abriu como pétalas de uma flor. Nas mandíbulas, uma espiral de dentes salivantes. No lugar onde deveria ficar o buraco da garganta, um olho o observava. A íris vermelha era psicótica, se movia tremeluzindo alucinadamente. A besta então rugiu como uma quimera de vozes demoníacas.

Uma mancha escura desceu pela calça jeans do brutamonte. Seu corpo inteiro tremeu em espasmos intensos e incontroláveis. O suor descia-lhe gélido em cascatas de frenesi e pavor. O coração batia tempestuoso no peito enquanto o ar trovejava férreo nos seus pulmões. Para Matthew, o demônio em pessoa veio lhe cobrar pelos seus pecados. Desesperado, ele berrou e correu por entre a multidão da boate, como se sua vida dependesse disso.

Pietra ficou desconcertada, tão confusa quanto Vic ou os amigos do adolescente. Nenhum dos expectadores do círculo ao redor entendeu por que o rapaz musculoso de repente fez xixi nas calças e saiu correndo como um doido. Afinal, tudo o que a indiana fez foi apenas olhar para ele. Kashvi, aproveitando a deixa, intimidou os dois garotos restantes:

— E aí, vão encarar?

Ambos se entreolharam, confusos, receosos.

— A gente te pega na saída, sua vaca! — falou o gorducho, recuando junto com o mais alto, indo atrás de Matthew.

— Estarei esperando, seus frangotes. — Kashvi sorriu triunfante.

— Me desculpa, Pietra — disse Victoire, evitando os olhos chorosos da estudante. Ela agarrou o antebraço direito com a mão direita, insegura. — Eu não queria nada disso. Mesmo contra você. Não desejo nada assim pra ninguém. — A garota pareceu engolir a vontade de chorar e prosseguiu. — Me desculpe. Tenho que ir, tchau.

Pietra não respondeu, ainda estava chocada com tudo o que ocorreu. Em seguida, a japonesa desapareceu por entre a multidão, que então já tinha voltado a dançar e tratou a cena como algo efêmero. Logo que ela sumiu, Louise surgiu sorridente por entre o cardume de gente. Sua alegria logo desmanchou-se quando viu a cara da amiga.

— Que foi, Pietra? Que aconteceu? — indagou a garota de cabelo branco cortado ao estilo Cleópatra.

A fofinha de jeans azul prussiano apenas soluçou e abraçou forte a amiga. Kashvi se aproximou e tentou explicar.

— Um canalha veio e a beijou à força. Mas eu já pus ele pra correr, pode deixar.

— O quê?! Como assim?! — exaltou-se a garota de saia preta e meia-calça escarlate. — Me mostra pra onde o vagabundo foi que eu espanco ele! Eu tenho um canivete na bolsa, se eu estivesse aqui eu enchia ele de buracos!

Pietra estava aos prantos nos braços de Louise. As lágrimas choviam mornas no espartilho negro da gótica, que abraçava a estudante com suas mangas brancas de espirais pretas. Louise estava condoída e sua raiva era genuína. Ela sabia o quanto o sonho do primeiro beijo era importante para Pietra. Internamente, a jovem de olheiras escuras jurou vingança. Nesse momento, a indiana captou uma movimentação estranha na boate.

Kashvi observou vários homens musculosos, com roupas de couro preto, bandanas e até mesmo óculos de sol se espalharem pelo local. Claramente eram rockeiros. O que preocupou a jovem de moicano roxo foi a cor da pele de todos eles: branca como a lua.

— Gente, temos que sair daqui — a jovem avisou as duas.

— Que foi? — Louise indagou, notando a preocupação da outra.

— Rápido. Este lugar não é mais seguro.

Quando Kashvi terminou de dizer isso, dois caras parrudos fecharam as portas da saída. Surgiu o primeiro grito no meio da multidão. Depois o segundo. Vários outros vieram em seguida. Os sujeitos corpulentos estavam desmembrando pessoas aleatórias, arrancando braços e pernas com as próprias mãos. Nervos, músculos e ossos voaram em fatias pelo ar, borrifando sangue quente na cara das pessoas ao redor. Os grandalhões erguiam suas vítimas desmembradas e torciam seus corpos como se fossem trapos molhados, encharcando suas caras de vitae numa cachoeira macabra regada a súplicas de misericórdia.

O pandemônio começou.


Nota do Autor:

Olá, wattpaders! Voltei! Depois desse imenso hiatus, retornei com tudo para terminar minhas histórias. Vampiro: A Máscara sempre foi uma paixão minha, então, claro que não poderia deixar este conto de lado (mesmo tendo deixado de jogar porque o mestre viajou pra SP! Oh, tristeza!). Estou também trabalhando no meu livro principal, Necrofúria, e no meu novíssimo conto em inglês, The Warlock's Dragon. Confiram se puderem! Isso sem contar que ainda estou desenvolvendo meu próprio sistema de RPG, algo mais trabalhoso do que já parece!

Pois bem, pessoas, comentem o que acharam do capítulo. Estou ansioso para saber a opinião de vocês! See you soon, guys! 

🦇 Vampiro A Máscara 🦇 O Despertar de Caim 💀Onde histórias criam vida. Descubra agora