A Dama das Sombras

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Parque Nacional Alpino. Victoria, Austrália. 21:22 PM.

O luar banhava as pétalas orvalhadas da floresta densa. Insetos cortejavam-se sonoramente. Herbívoros escondiam-se em suas tocas e predadores rondavam à busca de caça. O labirinto arbóreo era repleto de rochedos, colinas e longas planícies. O cheiro de vegetação chegava úmido às narinas das criaturas que cruzavam a floresta em uma corrida frenética.

 Sete humanoides repletos de pelugem negra como a noite ziguezagueavam por entre árvores, rochas e troncos caídos. A saliva respingava grossa por entre os dentes anavalhados. Enormes pegadas de lobo eram cravadas na terra fofa quando passavam.

Então, pararam. Uma força opressora parecia emanar da onipresente escuridão. Foi então que as sombras da lua começaram a se mover ao redor das bestas. Esgueirando-se como um líquido vivo, as trevas projetadas das plantas e galhos moveram-se até formar uma poça três metros à frente. Uma nuvem amorfa de pretidão ergueu-se até assumir uma silhueta feminina.

 Como se atravessando um véu, dali saiu uma mulher de olhos puxados e pele branca como uma pérola. Ela vestia um kimono negro com desenhos de ramos floridos com sakuras carmesim. Um cachecol muito peludo de tom obscuro enrolava-se no pescoço. O negrume vivo do qual floresceu logo foi absorvido no cabelo preto e liso com corte reto na altura dos ombros.

— Olá, cachorrinhos — ela falou numa voz suave e brincalhona. — Querem brincar de pegar o ossinho? — Ela levantou a mão alva, erguendo uma mão humana que ainda gotejava sangue fresco do pulso.

Os lobisomens imediatamente rodearam a mulher e rosnaram, as garras enormes preparadas para fazê-la em pedaços.

— Foi o que pensei — ela completou, sorrindo. — Estava mesmo precisando aumentar minha coleção de cabeças empalhadas.

                                         ***

No subterrâneo de uma dimensão paralela, o vampiro de sobretudo caminhava por um dos extensos corredores lotados de armas, antigas e modernas. Segurava firme no crânio de prata na ponta de sua bengala negra enquanto passeava pela seção de metralhadoras e fuzis. As chamas azuis das tochas reluziam nos seus sapatos impecavelmente lustrados que caminhavam decididos. 

Os olhos de safira repousaram em um rifle que terminava em uma mangueira que conectava-se a um tanque. O sujeito de longos cabelos escuros levou a mão pálida ao queixo quando vislumbrou uma série de granadas UV roubadas da Segunda Inquisição. Ficou ali, calculando as chances que tinha de sobreviver caso precisasse usar essa munição.

Às suas costas, do puro ar, corporificou-se um homem de dois metros trajando uma armadura medieval completa. O metal estava trincado e arranhado várias partes. O brasão de um dragão reluzia imponente no peito, em alto-relevo dourado no ferro escuro. 

Um cacho de penas rubras saía do alto do elmo fechado com viseira de fendas verticais. Às costas portava um machado gigante enquanto uma espada bastarda pendia da cintura, ambos emitindo um brilho esverdeado das lâminas. Ele se aproximou do vampiro e disse, a voz grave e soturna:

— Problemas, meu senhor? Uma batalha vos aguarda?

— Talvez, Sir Dragoslav — respondeu Lucian, olhando para tanques de álcool ali no canto. — Digamos que vou visitar uma ex-namorada. Do que tipo que guarda rancor.

— No meu tempo as damas gostavam de rosas e poemas.

— Não estou escolhendo presentes — o Giovanni sorriu com a ideia. — Estou me precavendo. Milênios se passaram. Ela já era a mais forte de nós quando roubamos as relíquias. Nem quero imaginar no que ela será hoje em dia.

— Não consigo conceber alguém que supere vossa força, meu amo.

Lucian ergueu uma sobrancelha, degustando a ideia, embora soubesse do quão era onírica.

— É um mundo grande e sombrio, Sir Dragoslav. — O necromante virou-se para ele, encarando a armadura de ferro frio e juntas pesadas. — Ficaria surpreso com o poder que se oculta dentro das trevas. Ou na mágoa de uma mulher.

Uma figura de túnica púrpura materializou-se atrás do cavaleiro. Os cabelos cor de amêndoa desciam em rios encaracolados até a cintura. Era uma mulher gordinha que mantinha o queixo erguido, tal como uma rainha. Fez uma breve reverência ao cavaleiro de dois metros e dirigiu-se a Lucian:

— Consegui encontrá-la, meu senhor. Com muito custo, devo dizer. Mesmo com os rituais de detecção preparados por vós, ela se move... muito rápido. Tanto quanto o mais veloz dos Assamitas, devo ressaltar.

— Bom trabalho, Julissa. Ela sentiu sua presença?

— De forma alguma, mestre.

O Giovanni curvou os lábios com uma clara pontada de satisfação.

— Ótimo. Ela ainda não diablerizou alguém de minha família. Então há esperança. O exército está pronto?

Uma multidão surgiu atrás da mulher alva. Eram homens e mulheres de etnias e épocas diferentes, cada um portando algum tipo de arma de lâmina reluzente. Nem todos pareciam à disposição para servir o necromante: alguns o fulminavam com extremo ódio e desprezo. Lucian Giovanni ignorava-os, sabendo que mantinha cuidadosamente os grilhões de cada um deles.

— Para o portal — comandou. — E... Sir Dragoslav?

— Sim, meu senhor?

— Talvez deva me contar as poesias que usava com as damas de seu tempo. Mesmo que fatais, mulheres ainda apreciam mimos.

                                           ***

No meio da floresta, por entre o musgo das pedras e o tapete de cascalho áspero, o espaço se distorceu. Uma fenda de luz esverdeada surgiu, como que rasgando a película que separava os dois mundos. Ela se expandiu até que sombras a atravessaram. 

A roupa social de Lucian Giovanni destoava completamente do mar de mosquitos que rondava o local. O cheiro de seiva e flores silvestres era quase entorpecente. Julissa e Sir Dragoslav, que o acompanhavam, mal prestaram atenção nas cobras enroladas em árvores próximas ou na coruja que piava para a noite. Estavam surpresos demais com a carnificina diante deles.

A grama alta estava imersa em sangue. Havia pedaços de braços e pernas peludas jogadas entre os galhos das árvores. Havia um corpo de pelugem negra todo desfigurado, como se tivesse sido prensado pelo próprio intestino que agora o circundava como uma víbora.

 Outro corpo estava cravejado com os ossos de outro lobisomem, tal como se tivesse sido metralhado por lanças feitas de costelas e um fêmur. Uma das criaturas estava com o peito aberto, os órgãos todos arrancados e a coluna feita em pedaços. Havia, ali, uma genuína salada de lobos.

No meio de todos estava aquela mulher de kimono. Ela pisava em um tapete obscuro do qual erguiam-se sete tentáculos feitos de breu. Na ponta de cada um havia uma cabeça de lobisomem espetada, os olhos esbugalhados, o hálito quente e fétido ainda exalando dos dentes. O líquido rubro jorrava aos litros dos pescoços decepados e espiralavam nos Braços do Abismo, que eram tangíveis e, de alguma forma, vivos.

— Há quanto tempo, Yorukage — cumprimentou o vampiro, nem um pouco chocado com a cena. — Que prazer em revê-la.

A mulher virou os olhos castanhos para o necromante. As sobrancelhas se ondularam e o queixo se ergueu. Seus lábios se contraíram em um sorriso talvez forçado, embora espontaneamente surpreso.

— Lucian Giovanni. Pena que não posso dizer o mesmo. Mas veja só o lado bom. Acho que encontrei uma oitava cabeça para fazer parte da minha coleção.    

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