Psicodelia

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"Aica Salvatori... que lindo nome!" disse uma voz esganiçada em meio à absoluta escuridão. Então, uma chama surge, inundando o breu de luz e calor. A visão vai se aproximando do fogo, até que se pode avistar uma casa de dois andares tomada por um incêndio."Quanta ira nesse seu coraçãozinho! Tanto remorso... conte-me, criança, de onde vem isso tudo..." 

A imagem da casa se borra e surge o rosto de um fazendeiro de barba malfeita, pele rósea, cheio de rugas e com um dente a menos no canto esquerdo. "Foi estuprada por um caipira ou algo assim? Será isso?"

O ângulo afasta-se do rosto do homem e surge um céu azul atrás dele. O quadricular da camiseta xadrez vai se formando do pescoço para baixo; ossos e músculos surgem, até formarem os braços nus e fortes. O homem se torna completo com calças jeans bem surradas e botas sujas de terra. 

Ele flutua em uma paisagem azul celeste até pousar em um chão gramado; uma plantação de milho ergue-se da terra até alcançar quase dois metros. A imagem pisca e olha para esse homem de baixo para cima. Um braço  pequeno surge à direita e dá-lhe a mão. "Ah, ele era seu pai, entendi. A imagem dele parece assombrá-la até hoje, não é, Aica? Conte-me mais. Sinto uma angústia muito profunda adiante, vamos pular no tempo."

As nuvens passam rápidas pelo céu. O sol atravessa o arco celeste milhares de vezes em alguns segundos. Vê-se a casa de madeira, um varal cheio de roupas, dois cachorros latindo atrás de patos na margem de um lago próximo e duas crianças de brincando em uma colina. "Seus amigos?" Um garoto deveria ter uns dez anos, era loiro e forte; usava um crucifixo no peito. O outro era magricelo e tinha óculos fundo de garrafa. Ambos tinham feições muito semelhantes. 

Uma voz feminina sai de dentro da casa: "Crianças, o café da tarde está pronto! Eu fiz biscoitos!" Os três correm para dentro. A visão enxerga o musculoso ganhando a frente, então uma mão delicada surge no canto direito e toma a mão do garoto de óculos. "Vem, Biaggio," disse a voz infantil de uma garota, "senão o Ricci vai comer os biscoitos da mamãe sozinho de novo!"

"Seus irmãos... Quanta ternura..."

Na cozinha, as crianças disputam a bandeja de biscoitos sob os protestos da mãe, uma mulher alta com longos cabelos pretos. Então, a cena começa a se intercalar com o mesmo local, só que imerso em chamas. As crianças travessas pulando tentando alcançar a bandeja nas mãos da mulher se tornam esqueletos, enquanto a mãe é um corpo de pele negra, frita, os olhos caindo das órbitas. Na janela, vê-se os olhos gigantescos daquele fazendeiro, como se ele tivesse mais de cinquenta metros de altura.

"Está fazendo força para eu não ver o que realmente aconteceu, hein? Ora, vejam, só. Não resista, Aica; me mostre, vamos..."

Duas mãos de uma garotinha surgem à esquerda e direita, tentando tocar no esqueleto dos irmãos saltitantes. As imagens alternavam entre a cena de destruição e a plena normalidade, embora o chão começasse a rachar, assim como o vidro das janelas. O irmão de óculos veio e a abraçou, sua imagem "piscando" com a realidade em que ele é um esqueleto vivo. 

"Obrigado, Aica," ele disse aos ouvidos da visão, "mas ainda te acho um monstro." O homem gigante fora da casa começou a gargalhar, enquanto o teto se rachava e línguas de fogo escapavam das rachaduras, derretendo os móveis, quadros, vasos, tudo... Tudo estava se liquefazendo como se fosse cera.

"Puxa, você realmente está resistindo. Quanta força de vontade você tem! Mas não pode fugir para sempre, Aicazinha..."

A mãe em carne viva disse em uníssono com o irmão mais velho, também um esqueleto: "Venha, monstrinho. Venha pegar um biscoito. Ou será que você não é capaz?" O garoto forte riu. "Aica não consegue, mamãe, ela é uma inútil! Ela é uma mulherzinha tosca que não faz nada direito!" 

A casa liquefeita começou a ser sugada por um único ponto como se ali houvesse um ralo. Todas as paredes, móveis e objetos escorreram para lá até que só sobrasse escuridão e aquele fazendeiro gigante dando risada. "Você não presta, Aica," ele gritou, "queria que sua mãe tivesse te abortado! Eu disse para ela que só queria filhos machos!"

"Não, não, não... Volte, Aica, vamos. Não vá embora, volte!"

"Socorro!" a voz do irmão de óculos ressoou no local, como um eco infinito. "Aica, me ajude! Me ajude! Ele pegou a serra elétrica, Aica!!" De repente, ouviu-se o grito do irmão forte e da mulher de cabelos pretos. A boca do fazendeiro então foi ficando cada vez maior e maior. O hálito de cerveja barata ficou insuportável, a língua era um tapete cheio de restos úmidos... de ossos... A saliva era um mar de ossos! As risadas ecoavam da garganta e ensurdeciam. Então a boca se fechou e tudo retornou ao breu.

— NÃO!!!! — gritou a jovem de cabelos bem curtos de cor índigo. Ela abriu os olhos como se tivesse acabado de emergir das profundezas do oceano, sorvendo longas golfadas de ar.

Aica acordou no meio do círculo de motos, naquele mesmo beco. Estava de pé, com sua jaqueta de couro preto e camiseta branca com o símbolo do anarquismo. Tentou o mexer as pernas sob sua calça jeans, mas não conseguiu. Nem o mindinho do pé no coturno de montanhista movia-se. Ao redor das motos, sua gangue movia-se em câmera lenta. Todos urravam, olhavam para ela, como se torcendo por alguma coisa. A imagem dos prédios ao redor estava distorcida, borrada.

— Chega de investigar o passado tão longínquo — disse uma voz meio anasalada que ecoou por todos os lados. — Conte-me o que aconteceu nesse lugar, Aica Salvatori, e você estará livre.

Os dentes da vampira rilharam.

— Você não pode me enganar! Eu sei que isto não é real! Saia-da-minha-CABEÇA!!!

O lugar inteiro ficou branco de repente. Quando a vampira deu por si, estava com uma camisa de força em uma sala acolchoada. Havia cabos transparentes conectados na sua nuca que estavam constantemente sugando seu sangue e depositando-o em um pote grande do seu lado. A jovem  estava acorrentada dos braços às pernas a uma cadeira de ferro, diante de um sujeito também sentado à sua frente.

Todo de branco, ele vestia um jaleco de médico. Manchas vermelhas estavam salpicadas por toda parte em seu traje, inclusive nos sapatos sociais brancos. Pálido, ele tinha a cabeça dividida ao meio: do centro para sua direita, possuía um longo cabelo prateado que descia até além dos ombros. Do meio para sua esquerda, era reluzentemente careca. Havia um monóculo de lente escura na parte do rosto em que era calvo. Ele tinha uma expressão ameaçadoramente serena.

— Puxa vida. Temos mesmo que fazer isso do jeito mais difícil? — ele indagou, a mesma voz das visões da jovem.

— Quem é você? Vai se arrepender se não me soltar agora mesmo! — a vampira bufou.

— Meu nome é Sebastian Malek. Mas é doutor Malek para você, anarquista.

Aica estreitou as pálpebras sobre os olhos azuis.

— Camarilla, claro. Eu já deveria imaginar. Que alucinógeno você usou em mim, seu monte de estrume?

— Nenhum. Eu apenas investiguei sua mente, criança. É padrão que eu saiba as fraquezas mais profundas de todos meus pacientes. Mas você é particularmente resistente à Dominação, o que é um empecilho e tanto. — Ele se levantou e tirou luvas brancas do bolso.

— Me liberte antes que eu ponha esse lugar inteiro abaixo!

Sebastian deu uma risadinha aguda ao vestir as luvas.

— Você pode tentar o quanto quiser, Aicazinha. Esse dispositivo na sua nuca está mantendo os níveis de sangue no seu corpo baixos o bastante para você não conseguir aumentar sua força com Potência. E presa desse jeito, Rapidez lhe será inútil. Mas claro, você pode tentar usar Presença em mim.

Ele chegou perto da vampira e segurou sua nuca puxando os cabelos índigo e o couro cabeludo para trás. Aproximou a boca da orelha da jovem e lhe sussurrou aos ouvidos:

— A-d-o-r-a-r-i-a ver você tentar.

🦇 Vampiro A Máscara 🦇 O Despertar de Caim 💀Onde histórias criam vida. Descubra agora