Eu não posso te levar.

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A última vez que eu o vi, ele me deu um beijo apressado na testa e correu para o ônibus. O beijo tinha a sensação de falta, tristeza. Henrique tinha 16 anos, e amava Cazuza. Nossa vida era como uma série adolescente clichê e complicada.
Sentavamos em um prédio em construção abandonado, com a caixa de som dele, e algumas besteiras para comer. Ele dizia que não precisávamos de álcool para nos divertir. Mas aos quatorze anos, ele foi para a primeira festa e teve um PT. Continuou firme, dizendo que eu não devia beber nunca. Eu, dois anos mais nova, fingia que álcool era algo que eu repudiava. Mas aos quatorze eu também fui para a minha primeira festa, e bebi. Ele nunca soube disso. Líamos poesias, livros e textos juntos. No prédio, ou ao telefone. Dançavamos "o nosso amor a gente inventa" toda vez que tocava, e cantávamos alto e desafinado demais "vida louca". Ele dizia que Cazuza não era músico, era obra de arte. E eu concordava. Não para simplesmente não contradizer o Henrique, mas sim porque eu também achava. Ele também me chamava de obra de arte. Dizia que quem me tivesse, ia ter que cuidar como se eu fosse uma escultura de Afrodite.
"Você é a reencarnação de Afrodite, por onde você anda, espalha amor e beleza. Não existe ser mais belo que você."
Eu também achava o Henrique lindo. O jeito como ele se movimentava tinha graça e leveza. Aos 13, ele tinha dúvidas sobre a própria sexualidade, mas não sabia como me contar. Então, num dia frio, enquanto escutávamos "poema", ele perguntou se podia testar uma coisa. Respondi que sim, e ele me deu um beijo rápido e estranho. Era o meu primeiro beijo, e ele disse: "eu nunca tinha beijado antes. Queria ter certeza", "certeza do que?", "se sou gay ou não, odiei ter te beijado, os seus lábios são femininos demais. Preferia que fosse de um homem.". E foi assim que ele se assumiu. Ao quatorze beijou uns meninos na mesma festa em que bebeu. Disse que estava apaixonado pelo vizinho, e que o amor era lindo. "Você devia tentar amar alguém. Seu primeiro beijo foi com um gay.", "O amor não é pra mim, não quero namorar nunca. Não consigo me imaginar sofrendo por amor. Dizem que é pior que dor de machucado. Porque o machucado, a gente vê, e faz curativo. Mas e a dor do amor, como cura?", "com o tempo, idiota".
Ele me ensinou a andar de skate, discutia comigo quando eu recusava ler os livros da Jane Austen, e me criticava por preferir ler Stephen King ou Bukowski.
Uma vez, quebrei a caixa de som dele sem querer. Entrei em desespero, pois ele amava aquela caixa. Era ela que tornava as nossas tardes no prédio mais poéticas e divertidas. Dava um ar de que sabíamos o que estávamos fazendo. Mas a verdade era que não tinhamos ideia de nada. Eu comecei a pedir desculpa, uma atrás da outra. Ele somente pegou em meus ombros, e disse: "ta tudo bem, o bom é que agora vou ganhar uma nova. Acidentes acontecem, e agora a gente pode cantar enquanto não arranjamos outra.". Henrique sempre via o lado positivo das coisas. Quando se assumiu, o pai não aceitou de jeito nenhum, mas ele dizia: "ele é uma minoria, outras pessoas importantes na minha vida, como você, me aceitam, é isso que importa."
Mas eu sabia que doía. Aprendi a tentar enxergar o lado positivo de tudo com ele, mas não sabia que isso também era uma forma de mascarar como realmente estamos nos sentindo. Em todo tempo de amizade, só vi o Henrique chorar duas vezes.
Uma porque tinha quebrado o braço andando de skate, a outra porque tinha apanhado na porta da escola. Esse dia ele só chorou. Não quis cantar Cazuza, mas mesmo assim eu cantei "codinome beija-flor", baixinho.
A última vez que eu o vi, brigamos. Não lembro o motivo, mas somente nos demos as costas e fomos embora sem dizer nada. Eu o perdi ali. Era nova, e não entendia que a vida é curta demais para ser tão orgulhosa e impetuosa. Lembrar dele virando as costas para mim, e correndo, me parte o coração. A única coisa que eu podia ter feito, que era correr atrás dele, e dizer que tudo iria ficar bem, eu não fiz. O Henrique se suicidou. Se jogou do prédio em construção, e se tivessem o encontrado um pouco mais cedo, ele ainda estaria vivo.
Eu não disse que o amava, eu não estive de fato lá. Ele sempre dizia que o suicídio era um ato permanente, para uma dor temporária. O Henrique se foi, e deixou um buraco no peito de todos que ficaram. As vezes, a vida parece ser uma estrada longa e dolorosa, mas nem sempre é. Viver é uma montanha russa sem fim, e mesmo que pareça que ficar no topo é o melhor, as vezes é necessário despencar.
O Henrique desistiu. Mas a todo momento, ele me salvava dos meus próprios monstros. Ele me fez enxergar que eu ainda iria descobrir muitas bandas, escrever muitos textos, ler muitos livros, e conhecer muitas pessoas. Eu iria rir, e chorar na mesma intensidade. Ele dizia com muita convicção que eu encontraria o amor, e escreveria sobre, como se o meu maior dom fosse amar e ser amada. Henrique, você estava certo.
E toda vez que eu canto Cazuza em algum karaokê qualquer, é por você.

Fragmentos de um (des)conhecido eu.Onde histórias criam vida. Descubra agora