O cemitério de palavras que eu não disse.

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Crescemos aprendendo que devemos ser quietas, delicadas, educadas e nunca discordar, nunca bater boca. Mulher que discute demais não agrada. Mulher reclamona demais não arruma marido. Mulher que sempre nega é chata. 

Então crescemos com o conceito de que negar até mesmo aquilo que não queremos, é algo ruim. Aprendemos a dizer sim, ou simplesmente ficar quietas. Crescemos com a mídia ditando o que é bonito ou não em nosso corpo, e passamos a odiar coisas tão únicas e singelas.

Quando foi que eu passei a parar de usar short jeans? Será que foi quando o Seu Zé, que me dava bala sempre quando eu tinha 10 anos, assobiou pra mim e me chamou com malícia? Quando foi que eu parei de andar pra cima e pra baixo, no bairro onde eu cresci? Será que foi porque todos aqueles homens que me viram crescer, me olharam de forma diferente enquanto eu passava? Quando foi que eu parei com as minhas voltas de bicicleta? Será que foi quando um homem que eu jamais havia visto, se achou no direito de comentar sobre o meu corpo? Caramba, a minha bicicleta era da Barbie, e eu carregava na cesta a boneca comigo. Quando foi que eu comecei a usar sutiã, e a me andar curvada e com os braços cruzados para poder esconder os meus seios que cresciam? Será que foi porque a professora me chamou de canto, na terceira série, dizendo que eu devia usar algo por baixo da camiseta escolar, ou pedir uma mais larga, porquê os meninos olhavam muito? Quando foi que eu simplesmente comecei a aceitar que toda vez que eu saía, teria que escutar algum comentário referente a mim, ao meu corpo, a minha aparência? Quando foi que eu decidi que teria que aguentar até o fim que a pessoa que eu achava que poderia confiar, me tocava e me usava de uma forma que me machucava, doía? Tenho coisas guardadas dentro de mim, que as vezes me dói só de olhar para o meu corpo. Eu, encolhida na cama, olhando para o nada. Estagnada. O choro entalado na garganta, e uma dor física que eu não assimilava muito bem. 


 Porquê? Porque eu tava passando por aquilo? Porque eu não gritei? Porque... Porque o meu "não, por favor", não foi o suficiente?

 "Caramba, como você é dramática. Que chata, o que foi agora?".

 O que foi agora? Qual era o nome daquilo e de todas as outras vezes? Porque aquela vez eu me senti vazia, e me dei como morta por dentro? Eu sabia o porquê, e o nome. Só nunca consegui dizer isso para mim mesma. Eu saí dali em silêncio. Minha garganta doía, pois o choro se tornava cada vez mais um nó maior em minha garganta. Eu cambaleei até minha casa, e não sei dizer se fui sozinha. Tudo a minha volta era um borrão, e eu não ouvia nada.

 Aquele dia, eu queria poder dizer que eu desisti. Sentei nua no box do banheiro, e chorei. Eu não me abracei, não pedi desculpas para mim mesma. Eu não era culpada por nada daquilo. Eu não era culpada por aquela não ser a primeira vez. Era só a primeira vez em que eu me dei conta, de que não só me doía fisicamente, como psicologicamente. Eu estava devastada, e os meus soluços enquanto eu pensava: "grita, é só você gritar", eram uma forma de tentar segurar o choro. Eu tinha chorado em todas as outras vezes, mas naquela, exatamente naquela última vez, eu não queria. Não naquele momento. Pois eu entendi, que mesmo que eu estivesse naquela situação, eu não era culpada. Eu era vítima de tantos abusos silenciados. De tantos assédios que eu tentei ignorar.

 Eu, e o meu corpo, não temos culpa de nada. Eu tenho pernas curtas e grossas, mãos pequenas e dedos finos. Tenho algumas manchas, e algumas gordurinhas que acho que são fofas, pois me compõe. Eu, nesse turbilhão de amar e dor, sou cheia de coisas lindas e infinitas. Não amo cada parte em mim, mas respeito cada detalhe unicamente meu. Detalhes que me compõe. Detalhes que torna quem sou.

 Eu me respeito o suficiente para poder dizer que eu não tive culpa de ter me dado como morta por dentro. De ter sido tocada de uma forma que não tinha amor.

 Mesmo que as vezes a ferida ainda se abra, e arde, e eu chore ao lembrar... Eu não tive culpa. E quando entendemos que não somos o que querem nos tornar, e nunca vamos ser, tudo flui de uma maneira mais simples. Mais leve.

 Somos obras de arte complexas demais. Mas sempre tem um especialista perdido por aí, que saiba admirar e cuidar como se deve. Mas antes de mais nada, sejamos os nossos próprios especialistas admiradores de nossa própria arte.

Fragmentos de um (des)conhecido eu.Onde histórias criam vida. Descubra agora