Capítulo dois - Cidade dos mortos

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Sentia o peito arder em aperto, assim como o nó que se formara em sua garganta. E ainda assim corria.

Cambaleou uma ou duas vezes, mas sem deixar de ouvir o coro de gargantas sendo rasgadas por grunhidos animalescos, e estes o perseguiam o tempo todo. Sentia que o coração estava prestes a sair pela boca, mais um pouco e realmente sairia, como se ele tivesse que força-lo a ficar em seu lugar.

Os pés batiam freneticamente contra o asfalto, tendo de desviar dos demais físicos inumanos contra a calçada estreita, e alguns deles pareciam cadáveres em decomposição. Toda aquele amontoado de emoções lhe causava náuseas, junto ao cheiro de plástico queimado, fumaça e carne podre. Ofegava sem parar, e chegava a parecer que o peito desfaleceria em poucos minutos, mas em nenhum momento deixara de ouvir os chiados assustadores que os mortos vivos produziam.

Virou uma esquina ou duas, quase torcera o pé e mais de uma vez quando as pernas falharam ele quase foi ao chão. Além dos grunhidos em rouquidão podia ouvir um zumbido constante, e este parecia vir de nenhum lugar além de sua própria mente. Talvez tudo aquilo seja a mesma apenas lhe pregando uma peça. Talvez ele ainda estivesse dormindo naquele deserto. Mas tudo parecia assustadoramente real, até mesmo os fios espalhados e carros tombados, além de céu opaco e alaranjado. Era assustador.

Em certo momento avistara a vidraça em uma porta entreaberta — Parcialmente em destroços. — De uma construção pálida do que parecia ser uma farmácia. Recobrou uma breve dose de consciência, tentando afastar as lágrimas que brotavam involuntariamente e normalizar sua respiração. Se desse sorte o lugar poderia servir como um teto de abrigo, pelo menos até recobrar seus sentidos. Parecia que a qualquer momento sua mente desligaria, sem qualquer aviso prévio além da visão turva e vertigem.

Um passo desajeitado de cada vez e ele se aproximava, cambaleando aos poucos, sentindo sua força esvair-se. Quase perdia todos os sentidos quando ouvira-o baixinho, logo ali, em um dos becos sem saída daquela rua, seu gemido de morte. O corpo em decomposição arrastava-se em seu caminhar torto, o tornozelo para o lado tornava o seu pisar estranho, um dos pés quebrado para trás enquanto o outro fazia o trabalho de sustentar o corpo por si só. Tentou discernir o morto dos latões de lixo, forçando a visão a endireitar-se, mas era como abrir os olhos abaixo d'água. A visão embaçada apenas colaborava para que uma silhueta torna fosse parcialmente visível, junto aos trapos pendendo a pele podre.

E ele estava perto demais.

Um passo a frente e não estava mais no mesmo lugar, dois passos e sentiu as forças abandonando as pernas e o resto de seu corpo. Três passos e já estava mais perto da farmácia, mas os músculos falharam em o sustentar e logo ele estava no chão. Sentiu o baque surdo do asfalto duro contra as costas e mal conseguia respirar, soltando todo o ar que mal sabia que prendia. Apenas enxergou o céu pálido, e em seguida a silhueta desajeitada se aproximou, junto a podridão que emanava de si.

O cadáver se jogou contra o garoto como um saco de ossos, abrindo sua boca repleta de dentes apodrecidos para abocanhá-lo em qualquer lugar. Uma mistura de saliva com sangue escorria de sua boca, como se ele fosse um cão com raiva que não desejava nada além de matar. Ele desesperou, sentindo o odor fétido tomar conta de seu nariz.

Usou dos braços sem forças para tentar afastar o corpo de si, enquanto o mesmo usava de suas forças sobre-humanas apara tentar aproximar-se cada vez mais. Abria sua boca tão grandemente que parecia que o tecido de sua pele rasgaria, e por pouco não o atingia uma mordida. O morto-vivo grunhia desesperadamente contra si, doido para devora-lo de uma vez só e saborear sua carne humana.

Apenas alguns segundos de luta contra o homem fora de si que remexia desesperado pela morte do garoto, e mais um coro de grunhidos se aproximara. Não sabia como, mas aquele multidão fora capaz de encontrá-lo mesmo após tê-lo perdido de vista. Sentiu o coração acelerar contra o peito, forçando com tudo o que tinha o corpo acima de si, tentando afasta-lo para que pudesse levantar-se e correr, mas fora em vão. O homem parecia muito mais forte e sua determinação a mata-lo e devora-lo apenas colaborava para que o garoto estivesse em desvantagem.

Ele tensionou os músculos dos braços, cada parte de si determinada a sobreviver a aquilo. Ele não sabia quem era, não sabia o que estava acontecendo com o mundo que conhecia, mas não morreria antes de descobrir. Por isso usou recobrou as forças de suas pernas, levando a parte superior contra o abdômen podre do homem, e apenas com um impulso que cobrou todas as suas forças, o morto-vivo voou para longe.

O corpo caiu logo a frente da multidão que mancava, fazendo com que aqueles que não desviassem do mesmo cambaleassem e ainda assim rastejassem pelo chão, as gargantas roucas implorando por sua carne com grunhidos de súplica, esticando os braços na direção do garoto.

Uma fração de segundos, foi o tempo necessário para disparar em direção a farmácia logo a frente, e quando adentrou-a, empurrou a transparente porta de vidro.

Estava ofegante, sentindo o peito arder em chamas.

Mas não seria eficiente, aquelas criaturas poderiam facilmente arrebentar os vidros em somente algumas batidas. Mesmo lá de dentro sentia que não estaria seguro, um descuido sequer e seria morto.

Analisou bem os arredores, apenas dezenas de prateleiras, uma ou outra vazia, apenas com poucos medicamentos tombados para lá e para cá. A mais próxima e mais vazia poderia funcionar bem como uma barreira contra aquelas coisas lá fora, por isso usou de todas as forças restantes para retira-lá de seu lugar. Forçou os músculos que pareciam sem força alguma, e em um ranger contra o assoalho a estante de remédios movia-se lentamente.

Arrastava com os pés ao chão, sentindo tudo em sua volta girar cada vez mais e os sentidos falharem. Gemeu com toda a tensão e força que exercia sobre si, e quando sentiu o tremor e baque estridente contra o vidro, notou todos seus músculos se aliviarem de uma vez só.

Apenas com a lateral de seu corpo apoiada contra as prateleiras, sentindo o braço quase contrair-se de tanta dor, arrastou-se lentamente para o chão. Sentindo uma enorme onda de cansaço como uma avalanche que engolia tudo ele deixou que os olhos fechassem, e em um último arfar sua cabeça pendeu para o lado.

Apenas a súplica por sua carne era audível, antes do breu tomar conta.

Apenas a súplica por sua carne era audível, antes do breu tomar conta

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