Capítulo três - Dilapido

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Um som estridente arranhou-lhe os ouvidos, o despertando de um sono quase sem fim.

Mas ele acordou sem fôlego.

O ar pareceu desaparecer de uma hora para outra, como se o peito pesasse naquele instante, enquanto sua mente era torturada pelo incessante ruído. Logo mais um grupo de desconhecidos; e estes pareciam vivos até demais. Sequer mancavam ou grunhiam, apenas corriam desesperados para dentro do alojamento.

— Peguem o que for necessário, rápido! — Ouviu a voz máscula e rouca ordenar aos demais, porém não pode identificar seu dono.

"Aqui.." tentou falar, mas sua voz não saía.

"Me ajudem, por favor".

Em seguida dezenas de passos contra o assoalho.

— Ali, olhem! Perto da entrada! — Eram apenas flashes, mas podia jurar que aquela garotinha segurava uma arma.

O garoto tentou discernir seus rostos, mas não passavam de borrões desfigurados, e o olhar turvo não ajudava em nada.

Ele temeu pelo pior quando todos localizaram seu corpo inerte sobre o chão, em torno de seis ou sete, todos lhe direcionando fitadas que não sabia se era de medo ou curiosidade.

— Será que está morto?

— Não, idiota! Não vê que se mexe?!

— Deve estar infectado! — "Infectado?" , ele repetiu em sua mente, como uma terrível dúvida.

O que ele quer dizer com "infectado"?

— Jim, se afaste! — O moreno disse ao mais baixo, que em uma feição nada agradável deu dois passos para trás enquanto segurava a arma próxima ao peito, e a qualquer momento poderia aponta-lá para o garoto. Em seguida o mesmo se direcionou até seu corpo estirado ao chão, que enquanto isso o assistia e tentava associar os fatos.

— Ei, garoto? Consegue me ouvir? — Sua voz soou como se ele estivesse abaixo da superfície, assim como as dos demais ali presentes. Ele gemeu, sentindo a cabeça latejar e os olhos queimarem, além de dores incessantes pelo corpo. — Sabe me dizer se foi mordido? Ou arranhado?

Seu rosto mantinha uma certa contusão de dúvida, enquanto ele tentava forçar sua voz a sair.

— Pode me dizer o seu nome? — Tentou novamente quando obteve apenas um falho gemido como resposta.

— Mm.. — A única letra saiu arrastando-se por sua garganta, mais semelhante a outro gemido, e apenas a única resposta parcialmente concreta que ele poderia dar-lhe.

— Se afasta, Benny! — Ouviu vindo do grupo logo atrás. — Não sabemos se ele foi mordido!

O homem apenas olhou para trás, e obedecendo-a sem dizer mais nada, estava prestes a se levantar como se percebesse o risco que estava correndo. Afinal, ele mal o conhecia.

"Não!" Tentou suplicar, mas era como se seu corpo não obedecesse nenhum de seus comandos. Mas, como se fosse involuntário e um movimento de pura sanidade, ele tomou o controle, e apenas sua mão parcialmente firme agarrando a manga da blusa surrada e suja foi o suficiente para convence-lo.

"Benny" o olhou de imediato, um certo pesar caindo sobre o garoto aos seus pés. Ele precisava de ajuda, e ele sabia disso, mas não sabia qual era sua situação. Por isso abaixou de imediato, um movimento brusco que lhe fez agarrar os ombros franzinos do mais novo.

— Me diga se foi mordido! Diga! — Suplicou. — Merda!

— Vamos logo! Temos que encontrar a Eva antes que anoiteça. — Um deles alarmou, tentando apressa-lo.

— Eu não vou deixar ele aqui! — Por um momento sentiu o coração aliviar-se, um certo prelúdio de paz inundando seu ser ao perceber que teria uma chance de continuar vivo.

— Você está louco?! Você quer matar a gente?

O homem agarrou o corpo quase sem vida, girando seu braço contra os ombros e usando seu peso de auxílio.

— Pare já com isso e vamos embora! — A mesma voz lhe alertou mais uma vez, mas ele não pareceu dar ouvidos.

Sequer parava suas ações, e o garoto sentia seu corpo inerte apenas sustentado pelo corpo do homem. Em dado momento, quando a mulher desistiu de convence-lo, apenas colocou seu corpo a frente ao dele a fim de tapar a passagem, foi apenas aí que ele parou suas ações e encarou os olhos profundos.

— Benjamin, me escuta! — Ela alarmou o tom de voz. — Nós não sabemos quem ele é! Não sabemos se vai acordar no meio da noite e sair matando todo mundo!

E o silêncio reinou.

— Ele não parece estar infectado. Temos que ajudar. — Ele insistiu.

— Apenas pensa um pouco! Olha para o que está acontecendo! Não tem como confiar em ninguém, nem sabemos se estamos seguros em qualquer abrigo, quem dirá com um desconhecido!

— Quando foi que você perdeu sua humanidade?! Se alguém precisar, se alguém estiver machucado e sozinho eu vou ajudar! — Sua voz saiu em um tom grave de melancolia e pesar, calando-a de uma vez. — Eu não vou deixar que tudo isso tome conta de mim!

— E você vai botar todos que conhece em risco? Vai nos botar em risco?!

Ele sentiu o pesar causado pelo silêncio dos demais, um agudo que tamborilava em seus ouvidos, torturando-o.

— Eu me responsabilizo por isso. Ninguém vai morrer. — Em seguida um suspiro vindo da mulher.

Do outro lado surgiu um outro garoto, a estatura semelhante a dele; franzino e alto. Ele deu apoio ao lado do corpo que pendia sobre Ben, em seguida ambos caminharam até a porta ao qual entraram.

— Se algo der errado, eu avisei.

Ela saiu na frente deles, irritadiça, carregando sua arma na lateral do corpo. Havia um buraco por onde ela passou, feito com uma serra provavelmente, talvez isso explicaria o barulho estridente ao qual o acordara. Ele também passou pelo mesmo, Ben na frente, ainda lhe dando apoio, e em seguida o garoto mais novo.

Sentiu o ar pesado e poeirento dos resquícios daquela cidade; de trás da lojinha havia um latão de lixo, um portão alto com grades de ferro e estacas semelhantes a grandes espigões no topo. Do outro lado uma caminhonete verde-musgo, provavelmente o único veículo usado por eles para chegar até lá ilesos, visto a grande quantidade de criaturas semelhantes a aquelas vagando livremente pelas calçadas.

Só então, quando pode associar todos os ocorridos, o medo se permitiu instalar em seu peito. "Pra onde estão me levando?" "Quem são essas pessoas?" "O que eles são?", varias duvidas surgiram em sua mente, assombrando-o e o assustando-o sem piedade alguma. Por um momento tentou se soltar das mãos rígidas, mas sequer tinha forças para falar, tampouco para correr. Apenas o olhar que captava nuances e os ouvidos onde tamborilavam poucas falas, ambos quase nada compreensíveis, e estes eram seus únicos reflexos que sobraram.

Na verdade, era como se não lhe restasse nada além do que algum dia fora o mundo que conhecera.

O caçador de mentes ( REESCREVENDO )Onde histórias criam vida. Descubra agora