Con†o 16 - A última mordida

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No Sul de São Paulo, na cidade que nunca dormia, as pessoas estavam preocupadas. O desaparecimento de diversos indivíduos estava marcando a temporada de Outono com um macabro desfecho para cada busca. Os corpos eram encontrados já em decomposição, com pontos específicos arrancados por unhas, marcas de dentes e hematomas carimbando os arredores. Os pais evitavam deixar seus filhos saírem pelas ruas, até mesmo para frequentar o colégio. Era como um arrebatamento criminoso, onde todos eram prisioneiros de si mesmos, esperando para que algum dia alguém tivesse misericórdia de suas vidas.
De certa maneira, ainda havia aqueles que duvidavam de tudo o que estavam vivendo. Aqueles que enfrentavam a gravidade em prol da adrenalina e da satisfação, sem imaginar as consequências que viriam no decorrer daquilo.

Gabriel e Matheus eram melhores amigos. Estudaram juntos durante toda a sua infância e estavam ali um pelo outro em qualquer conflito que surgisse. As garotas com quem saíam, as decisões que tomavam e os acertos que faziam, sempre deixavam que um ao outro decidisse.
Gabriel era um garoto bonito. Sua altura enlouquecia as meninas e sua inteligência fazia com que qualquer um invejasse a intelectualidade que seu cérebro guardava. Seus cabelos negros, perfeitamente alinhados, sua pele negra e seu rosto bem desenhado eram somente um contraste do homem bom que era. Já Matheus, não era tão bonito. Pelo menos para quem o visse de fora de sua amizade, pois sempre focavam a atenção em Gabriel e esqueciam que o mesmo existia. Era um rapaz ruivo, com sardas pintando todo o seu rosto e uma altura não tão elevada. Tinha quase a mesma mente que o amigo, exceto pelo fato de que era ainda mais inteligente e astuto nas coisas que pensava e decidia. Juntos, eram o braço direito um do outro, e nunca se importaram com comentários maldosos.

- Não sei o que faremos agora - diz Gabriel.

Três dias atrás, decidiram fazer uma trilha juntos, sem analisar o que estava havendo por toda a cidade. Era iluminada, movimentada, cheia de barulho e pessoas caminhando por cada calçada. Não acreditavam que um lugar daqueles fosse vítima de atentados ou violência, viviam em um mundo onde nada de ruim existia, ou talvez preferissem fingir que estava tudo bem para que suas vidas não fossem afetadas por toda a massa afora. Porém, caíram em um buraco coberto por folhas durante a caminhada na trilha e não faziam ideia da profundidade do mesmo. As folhas amorteceram sua queda e o baque foi forte, fazendo com que Gabriel fraturasse seu tornozelo. Aquele era o menor de seus problemas, afinal, estavam há três dias sem comer nada e ninguém os ajudaria, vez que a cidade estava evacuada a dias, e só assim notaram a gravidade dos problemas de onde moravam.

- Tenho uma ideia, e não sei se você estará de acordo, mas... - Matheus deixa uma hipótese em aberto, arrancando a curiosidade de Gabriel já desesperado.

- Então diga! - Ele enfatiza a resposta, olhando atentamente para o amigo.

A noite estava escura. Os corvos cantarolavam sua canção macabra e galhos de árvore quebravam lentamente do lado de fora, possivelmente por algum animal eufórico para o dia em que ambos os garotos morressem e tivessem a chance de se aproveitar de seus restos. O frio estava congelante, quase mortal.

- Teremos que comer alguma coisa, ou ambos morrerão. Tenho uma moeda aqui, podemos jogá-la no alto e decidir qual de nós dois será o prato da noite - ele diz, abaixando a cabeça e sussurrando -. Talvez seja uma ideia louca, quase doentia, mas estamos morrendo, e pelo menos um de nós precisa sair vivo daqui para contar o que realmente está acontecendo com as pessoas desaparecidas - quando finalmente olha para Gabriel, ele afirma.

Achava a ideia louca demais, mas coerente, dada a situação em que estavam submetidos. Em seu estado natural, jamais concordaria com algo como aquilo.

- Não temos opções mais atraentes - Gabriel sussurra, com os olhos cheios de lágrimas.

Naquela altura, acreditavam que os desaparecimentos não passavam de míseros buracos por todos os lugares, que guardavam pessoas e as faziam morrer de fome ou desespero. Estavam em dois, e pelo menos um deles precisava sair dali para contar a todos a raiz do problema. Sacrificar uma de suas vidas por todos era o mais nobre a se fazer.

Gabriel escolheu cara, e Matheus, coroa. Era tudo ou nada. Suas vidas estavam nos versos de uma moeda velha de cinco centavos e no fundo, torciam para que o resultado fosse o oposto do que escolheram. Ao mesmo tempo, temiam pela única maneira de sobrevivência que haviam encontrado.

A vida que dividiram juntos passava pelos olhos de Gabriel como um flash de luz. Sorria enquanto a moeda voava pelo ar, deixando lágrimas teimosas caírem por seu rosto enquanto observava a mesma cair com a cara apontada para o céu. No fundo, ele esperava que aquilo fosse acontecer. Ele seria forte pelos dois, e deixaria com que sua vida fosse dada para salvar uma quantidade maior de pessoas.

- Eu te am... - Gabriel estava prestes a dizer, quando Matheus apunhala uma faca em seu peito com toda a força e rapidez que possuía.

Nos seus olhos tinha espanto, horror e medo. Um resquício de surpresa que escorria junto com seu sangue por sua roupa, e a pressão que fazia doer em seu peito o sufocava, impedindo-o de falar qualquer coisa.
Os olhos de Matheus eram famintos, quase desesperados. Sua boca salivava e observava o sangue atentamente, como se a qualquer momento fosse o devorar, e assim o fez.

O sangue do garoto sujava toda a sua boca enquanto seus dentes trabalhavam em partes estratégicas de seu corpo, arrancando sua pele e remoendo toda a sua carne dentro de sua boca. Ele se deliciava enquanto o amigo sofria em agonia, agonizando e perdendo sua vida aos poucos. Sua língua lambia os próprios lábios com uma satisfação que somente ele conhecia. A satisfação de quem tinha certa experiência em fazer aquilo.

Matheus mastigava, mordia e nunca se cansava. A carne fresca de Gabriel serviria de banquete para animais que viriam com o tardar da noite, mas estava aproveitando o que podia e o que seu tempo lhe permitia, não desperdiçava uma parte sequer.
Ao sentir-se cheio e satisfeito, limpa sua boca com a manga de sua roupa.

- Tenha uma ótima noite, Gabriel - ele sussurra para o rapaz já sem vida, jogado no chão, sorrindo descaradamente.

Com um pulo eficaz e rápido, Matheus sai do buraco com certa precisão. Estava esperando por um temporal, pois sabia que o mesmo viria, fora previsto três dias atrás, antes de atrair Gabriel para a armadilha que ele mesmo tinha feito. A chuva arrancaria de seu corpo os rastros do sangue do amigo, e facilitariam o apodrecimento do corpo do mesmo, junto com as mordidas dos animais e os bichos da terra que terminariam seu trabalho.
E assim, ele teria tempo de acobertar a si mesmo e planejar o próximo alvo, dando a São Paulo um motivo para evacuar e ter medo pelo resto de suas vidas.

Conto criado e escrito por dtxvader, essa garota incrível * - * ♥️

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