Num belo sábado, o Barão do Cerro Alegre trouxe a neta à cidade e foi depô-la no escritório do pai, que a esperava, já impaciente. O velho não se demorou; tinha horror às ruas abafadas e às feias salas dos escritórios. Mostrava-se mesmo apressado em se desembaraçar da incumbência, temendo ser cúmplice em algum desastre que acontecesse a Maria, que via cercada de perigos, sempre que saía da sua chácara. Ainda assim, não se pôde conter e recomendou ao genro:– Dizem que por aí há muitas febres... é preciso ter prudência! A avó pede-lhe que não deixe a Maria comer doces na confeitaria. Ela pode abusar, é gulosa...
– Vá descansado; e obrigado!Enquanto Argemiro despachava uns papéis, Maria ora se debruçava na sacada, ora remexia todo o escritório do pai.
Mas Argemiro tinha pressa também de atravessar as ruas com a sua Gloriazinha pela mão, e abreviou o trabalho. Saíram; e as recomendações dos pobres velhos foram absolutamente esquecidas...
Maria da Glória agarrou-se ao pai, atordoada com o burburinho do povo com que ia esbarrando; aquilo alvoroçava-a sem diverti-la, mas a pouco e pouco, a cada paragem para uma conversa de minutos, em que os amigos do papai lhe beijavam a mão, como a uma princesa, acordava nela uma curiosidade estranha por esta vida da cidade, tão embaraçada de enleios. Queria ver tudo, retinha Argemiro em frente das vitrines, embarafustava pelas lojas; e como via em exposição muitas coisas que não tivera nunca, exigia-as do pai, que, dócil como a cera mole, ia comprando tudo, sentindo-se ainda feliz por satisfazer assim a sua Maria, só dele, nesse sábado bendito.
Quando chegaram às Laranjeiras, o pai subiu logo para o seu quarto e recomendou a Glória que esperasse na sala Alice Galba, a quem mandou avisar, pelo Feliciano, que viesse receber a menina.
Maria recostou-se no sofá, esmagando no estofo as papoilas do seu chapéu à jardineira. A antipatia da avó sugerira-lhe instintiva repugnância por essa intrusa, como chamavam lá em casa a governanta das Laranjeiras. Ah, mas Glória tinha o seu plano, não deixaria que a outra tomasse confiança consigo. Uma alugada, uma mercenária!
E dava-se ares de grande dama, muito atirada sobre os almofadões de pelúcia, com uma expressão de desprezo afeiando-lhe a boca e as suas faces rosadas, de criança. Realmente aquela atitude não era agradável, o chapéu sobretudo incomodava-a mortalmente, e sentia enterrar-se-lhe nas costas, como um castigo, a ponta de um alfinete. Suportou o sacrifício heroicamente, até que viu entrar na sala, com o modo mais simples e desembaraçado do mundo, uma moça, nem bonita nem feia, vestida de cinzento, com aventalzinho preto e um molho de chaves pendentes da cintura.
Glória empertigou-se mais. Alice aproximou-se dela sorrindo e estendeu-lhe as mãos, duas mãos muito brancas e longas. Glória levantou-se, sem se dignar tocar nessas mãos, e disse com aspereza:– Quero ver o meu quarto.
Alice contemplou-a com tristeza e curiosidade; depois, voltando as costas:
– Siga-me...
Atravessaram o corredor, subiram uma escada e entraram em um quarto forrado de azul, com janelas abertas para os lados do Silvestre e duas camas brancas.
– É aqui?!
– É aqui.
– De quem é esta cama?
– Sua.
– E aquela?
– Minha.
– Eu quero dormir sozinha; não sou medrosa. Arranje outro quarto para mim. Agora, tire-me o chapéu!Glória sentou-se na cama, brutalmente. Alice tirou-lhe o chapéu e endireitou-lhe o cabelo. A menina foi ao espelho, achou-se bem penteada e lá no fundo da sua consciência concordou que jamais sentira pousar sobre a sua cabeça mãos mais habilidosas. Voltando-se contemplou Alice de alto a baixo, e perguntou:
– Quantos anos tem?
– Vinte e três.
– Parece mais velha.Alice sorriu.
– Eu tenho doze...
– Parece mais criança...
– Hein?! toda a gente diz que já pareço uma moça! É míope?
– Parece criança no juízo, minha amiguinha, e é por eu ver muito bem que lhe digo isto... Não seja má... venha lavar as mãos; seu pai espera-a para jantar; não está ouvindo o tímpano? É o sinal...
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Intrusa
Roman d'amourNo Rio de Janeiro do século XIX, Argemiro Cláudio, um rico advogado, coloca um anúncio no jornal, visando contratar uma governanta que pudesse trazer ordem à sua casa e ajudar na educação de sua filha, Maria da Glória. A única pessoa que responde ao...