Provada a intriga do Feliciano, recomeçaram as visitas de Glória às Laranjeiras. A baronesa exigira segredo do que se passara, desejosa de que Argemiro conservasse em casa o criado, que já o fora da filha. De resto, ela estava intimamente convencida de que o negro não mentira, mas se enganara. Convinha-lhe tê-lo de guarda naquele lar em ruínas, como se à sua voz de alarme ela pudesse correr e ainda salvar alguma coisa!
A verdade, que percebia sem a confessar, é que a neta lucrava muito na convivência de Alice.
Ela perdia aos poucos aqueles modos agressivos de criança malcriada, começava a interessar-se pela vida e a abrir os livros com mais freqüência.E já não lhe bastavam as visitas curtas, do sábado para o domingo; desejava estendê-las agora até as segundas-feiras, cujas manhãs aproveitaria em passeios com a governanta do pai.
A baronesa protestou indignada:
– Mais essa! Andar uma menina de boa família colada às saias encardidas de uma mulher suspeita, por essas ruas da cidade! Não faltava mais nada...
Padre Assunção interveio:
– Consinta na primeira experiência. D. Alice parece-me severa e digna de toda a confiança. Confesso-lhe que sinto uma certa curiosidade pela direção que ela vai dando aos gostos da nossa Maria... Prometo velar pela sua neta.
– Ah! Padre Assunção, a República estragou a nossa terra! Agora qualquer criatura parece digna de toda a confiança... Quem nos dirá quais as intenções daquela criatura? Por mim tenho medo, apesar da sua vigilância...
Glória zangou-se e fugia, aos repelões, dos braços da avó. Não haveria remédio senão ceder à vontade da criança, e a baronesa cedeu, molestada, enfraquecida.
Na primeira segunda-feira o padre Assunção recebeu muito cedo uma cartinha da baronesa:
“Glória está nas Laranjeiras; é hoje o dia determinado para o seu passeio. Confio-a à sua
guarda; olhe por ela. – Luiza”.Assunção telegrafou a Alice. Esperá-la-ia no largo do Machado, às três horas.
Logo que Maria deparou com o seu grande amigo sentado sozinho em frente à estátua, correu alegremente para ele e, afogueada, risonha, abraçou-o com força. Ele mal teve tempo de interrogá-la e já ela, revelando uma piedade até então oculta no mais fundo do seu peito, lhe contou o que vira, toda entusiasmada. Vinha do Instituto dos Surdos-Mudos.– Ah, padre Assunção, eu não sabia que havia gente assim, fechada dentro de si mesma, como me explicou d. Alice. Que desgraçados seriam se não houvesse aquela casa tão boa, onde eles conseguem aprender tudo, como os homens perfeitos! Como a gente tem vontade de ser boa, quando vê coisas dessas!
E, trêmula, loquaz, desatou a descrever as aulas, as oficinas, os dormitórios do estabelecimento, e os grupos de alunos, risonhos, limpos, sossegados...
Padre Assunção voltou-se para Alice, que, sentada a seu lado, riscava a areia do jardim com a ponteira do guarda-sol.– A senhora já foi preceptora?
– Nunca...
– Não podias ter empregado melhor o teu dia, minha Glória; agradece a d. Alice ter-te feito conhecer infelizes, cuja existência, como disseste, desconhecias... e que te despertaram tão bons sentimentos... Agora, vamo-nos embora, que a tua avó deve estar impaciente!
Maria beijou Alice e ainda, depois, voltou-se da rua para lhe dizer adeus com a mão.
Que diferença entre esta despedida e o seu primeiro encontro...Padre Assunção ia calado, meditativo. Que espécie singular de mulher era aquela, que, com tão alto senso de moral, se sujeitava ao papel de governanta da casa de um viúvo só? Humilhada em sua posição, maltratada por aquela menina orgulhosa, ela ia chamando habilidosamente a sua simpatia para os pobres e os infelizes. Seria por despeito ou por outro motivo mais maternal e em que a sua personalidade ofendida não tomasse parte? Fosse qual fosse a razão, a verdade é que aquela simples visita a um instituto do seu bairro valera por todos os sermões com que ele procurara abrandar o coração altivo de Glória. O tato sutil daquela mulher começava a encantá-lo; mas vinha-lhe medo de sugerir ao amigo essa impressão.

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A Intrusa
Roman d'amourNo Rio de Janeiro do século XIX, Argemiro Cláudio, um rico advogado, coloca um anúncio no jornal, visando contratar uma governanta que pudesse trazer ordem à sua casa e ajudar na educação de sua filha, Maria da Glória. A única pessoa que responde ao...