– Assunção!
– Argemiro...
– Fizeste bem em vir esperar-me; estou doido por conversar contigo; disseram-te lá em casa que eu chegaria hoje?
– Naturalmente... eu não poderia adivinhar!... olha a tua mala... Pareces-me magro...
– Um pouco...
– Boa viagem?
– Regular... Como está a minha gente? E tua mãe?
– Dá a mala ao carregador... Conversaremos em caminho.
– Tens razão; e eu estou com pressa de chegar a casa. Decididamente, abomino os hotéis. Que desconforto! que aborrecimento! que noite! Ah! Assunção, nunca o meu cantinho me pareceu tão delicioso como nesta ausência. Isto deve ser velhice... os meus ossos não se afazem a outros colchões, nem a minha cabeça a almofadas que não sejam as costumadas. Hás de acreditar que sofri de insônias em S. Paulo? Depois eu não tinha notícias! Glória escreveu-me duas cartinhas; tu nenhuma... Nenhuma! inacreditável o teu descuido! Meu sogro escreveu-me também, mas só falava na mulher e na neta. É verdade, o Caldas também me escreveu... Referia-se a ti...
– Tiveste então cartas de todos!...Saíam da Central. Argemiro acenou para um carro.
– De todos... mas incompletas... Só tu me poderias dizer tudo; és íntimo de minha casa, mais íntimo do que eu! Compreendes que eu fugi!
– Por que, homem?!
– Nem sei porque... medo do barulho, da intriga... de não poder conter o meu mau humor. Estava enervado, aborrecido... Depois arrependi-me. Não tinha que fazer; bocejava pelas ruas... o hotel indispunha-me comigo mesmo. Estou como o caracol, – não posso sair da minha casa sem perder a vida... Acredita: até do cheiro da minha casa eu tinha saudades! Parece-me incrível que um sujeito de vida bem organizada goste de viajar. Tu nunca viajaste. É uma maçada! Mas que diabo, tu não me dizes nada!
– Não me dás tempo...
– Tens razão; mas estou cheio até a raiz dos cabelos. Mal conversei durante a viagem; estava com a língua entorpecida. Este cocheiro é um lorpa... não toca os animais! De que te ris?! Estou morto por beijar minha filha! Muito crescida? Tens ido lá todos os dias? Tens estado sempre com todos?...
– Todos os dias, não... mas quando vou estou com todos...
– Minha sogra ainda se demorará cá por baixo?... Isso é o que me interessa mais saber.
– Ignoro... Eu tenho frequentado menos a tua casa, receando que os barões achassem importuna a minha assiduidade...
– Estás doido! Sabes que te estimam muito! Bem... e... não houve por lá nenhuma questão...
– Tem paciência, escuta.
– Mau!
– Ontem à noite recebi uma carta de teu sogro, pedindo-me para vir esperar-te hoje à Central e prevenir-te de que a d. Alice só espera por ti para deixar a casa.
Argemiro não respondeu logo, e, arregalando os olhos, voltou-se para o amigo, muito desapontado.
– A notícia não é amável e acredita, Argemiro, que a dou com pena. Mas já agora deixa-me dizer-te que mais uma vez andaste impensadamente... Não deverias ter saído de casa nesta ocasião, tanto mais que já temias qualquer incidente desagradável...
– Não consinto! Ah, eu é que não consinto; e o dono da casa sou eu! Por que sai a d. Alice? Não sabes?... Eu imagino: picuinhas... alfinetadas... tanto a aborreceram, tanto a azedaram, tanto a mordiscaram, que ela não pôde mais! Era o que eu temia, lá longe! Parece que estava adivinhando. Um inferno. Ora o que me esperava! E agora? Dize-me: e agora?!
– Arranja-se outra...
– Estás tolo! Outra! A facilidade com que se dizem asneiras... Nem tu pensas no que estás dizendo. Conheço-te bem; sei qual é a tua opinião a respeito dela... Eu é que fui um asno, um idiota; não devia ter consentido na vinda de minha sogra para casa. Foi ela que escangalhou a minha felicidade com as suas bobagens de velha tonta. Disseste bem, fiz mal em fugir. Fugi por pusilanimidade... pelo eterno prazer do sossego e do bem-estar. Fresco bem-estar, o dos hotéis! E agora, hein?! arranja-se outra! ora, que resposta! Se há outra como aquela!
– Tu nem a conheces...
– Nunca a vi, mas conheço-a, adivinhei-a; abstraí da personalidade. Ela é o meu conforto; a minha segurança, a minha felicidade. Agora explica-me tudo: que lhe fizeram?
– Não sei, filho; mas creio que nada. Teu sogro, temendo a tua decepção, como se se tratasse de uma terrível catástrofe, escreveu-me ontem o que eu já te disse. A minha surpresa foi quase do tamanho da tua. Somente, eu espero conciliar as coisas.
– Ah, eu não... Acabou-se. Volto à ignomínia do Feliciano. Não. O Feliciano roda hoje mesmo a pontapés. Cachorro... Outra... outra... onde encontrá-la? Pensas que há muitas mulheres assim, por aí, à espera das minhas ordens? Tu estás bem convencido do contrário... Eu sei que a consideras muito... Já a tens defendido, à minha vista, quando a acusam. Por mim, declaro-te que acabei de conhecê-la nesta ausência... Por acaso, no dia da partida, juntei alguns livros avulsos pelas mesas e meti-os na mala. Em uma das minhas noites de insônia, no hotel, abri um desses livros, e verifiquei com espanto que ele pertencia a d. Alice. Lá estava o seu nome, por sinal com uma letra bem bonita... Era um livro inglês de poesias. A minha governanta lê versos; e de mais a mais em inglês! Folheei o livro com alguma curiosidade... Havia versos sublinhados, notas feitas à margem... Sabes que do meu exame de inglês não me ficou patavina... o livro não me poderia divertir; entretanto, não sei porque, era o único que me interessava! Comprei um dicionário e pude mais ou menos penetrar um pouco no mistério... Compreendes que isso não poderia deixar de impressionar-me...
– Ela é inteligente...
– Muito. Para ter a certeza disso eu não precisava das poesias inglesas; bastava-me a mudança radical de minha filha. Negarás isso?!
– Não...
– Lembras-te? Glória era terrível, intratável, brutinha! E agora? Está dócil, risonha, delicada. A avó perdia-a com os seus mimos e a d. Alice salvou-a. Tens reparado na boa pronúncia francesa de minha filha? Na véspera da minha partida ela leu-me uns exercícios do Método. Fiquei espantado. Um prodígio!... Logo, esta mulher, que ensina francês, lê versos ingleses, faz aquarelas razoáveis e interpreta ao piano trechos clássicos, como já eu ouvi, sem que ela o percebesse... é uma rapariga de fina educação e que não me resigno a perder por caprichos de terceiros! As minhas flores! Porventura tive eu nunca, nem mesmo no tempo de Maria, rosas como tenho agora?! É ou não é verdade que o meu jardim é um dos mais belos do bairro?!
– É...
– E quem o transformou? Ela. Ainda agora, lendo o livro do Shelley, sentindo-lhe o perfume peculiar e que em poucos dias ela espalhou por toda a minha casa, capacitei-me de que a alma dessa mulher é rara e voltada para tudo que torna a vida agradável. Ainda não lhe descobri defeitos...
– Há de tê-los.
– É humana... e portanto, queres dizer que se fosse perfeita seria defeituosa... Talvez seja feia... Sabia-me agora bem o imaginá-la.
– Ocupavas-te nisso?
– Às vezes; é natural: quando eu pegava no livro e sobretudo quando sentia o seu aroma... Qualquer outro faria o mesmo... não te parece?
– Talvez...
– Sou-lhe muito grato. Asseguro-te que nunca me vi tão lisonjeado, tão contente da vida, como agora nestes últimos tempos. Era uma atmosfera amorosa a da minha casa.
– Não há bem que sempre dure...
– Ora que notícia! E eu que vinha morto por senti-la!
![](https://img.wattpad.com/cover/183319504-288-k923555.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Intrusa
RomanceNo Rio de Janeiro do século XIX, Argemiro Cláudio, um rico advogado, coloca um anúncio no jornal, visando contratar uma governanta que pudesse trazer ordem à sua casa e ajudar na educação de sua filha, Maria da Glória. A única pessoa que responde ao...