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Era uma fortuna cair o aniversário de Maria num domingo. Sempre era um dia roubado à companhia da outra. O consumidor ciúme trazia a baronesa doente, de uma tristeza sem remédio. Os beijos da neta sabiam-lhe a falsidade, os seus abraços, amolecidos, tinham perdido o ímpeto selvagem dos tempos de que a via ir fugindo tão depressa. Qualquer dia levá-la-iam de todo, sem que nem ela ao menos voltasse a cabeça para trás, para um último sorriso...

Nem por ser exercitado no amor, o coração deixa de desvairar se o contrariam!
Às vezes, para o desabafo, a queixa subia-lhe aos lábios descorados; mas o marido, inflexível, acudia logo, com a crua lei do destino:

– Acostuma-te: mais tarde ela terá de acompanhar o marido, como a avó acompanhou o avô, e a mãe acompanhou o pai.

E ela, então, gemia desconsolada:

– Até lá, onde estarão os meus ossos! – como se a idéia da morte a tranqüilizasse.

Se os pensamentos a atormentavam de dia, à noite perseguiam-na os sonhos. Alice, sempre a Alice, apresentava-se-lhe sob diversas formas, mas sempre com as mãos que nem garras.

A insistência da idéia penetrava-a de crenças novas. Debateu-se em vão, concentrada no seu canto, com os olhos no retrato da filha, que o tempo ia desvanecendo num descolorido suave. Assim se atenuasse na sua alma a dor, como aquela sombra no papel! Por que há de haver coisas eternas na vida transitória? Já viu alguém refletir-se uma imagem com fixidez em águas de grande correnteza?

A vida não faz outra coisa senão passar, e a dela então imobilizara-se num momento de horror? Uma noite, em sonhos, a filha apareceu-lhe lavada em pranto. Seus olhos, como dois ramos de miosótis inundados, vinham varados pela tristeza moça do amor. Não houve outra queixa. A mãe compreendeu-a. Era tempo de agir. Consultaria os espíritos, já que na terra não a ajudava ninguém.

Lembrou-se de uma tal d. Alexandrina, da estação do Rocha. Contavam-se dela maravilhas, revelações estupendas!

Preparou-se cedo. Vendo-a sair do quarto, de chapéu e de capa, o marido espantou-se, tão raramente ela punha os pés na rua.

– Vou à missa pedir a Deus saúde e juízo para Glória. Ela faz anos hoje...

– Sei...

A baronesa não sabia mentir.
Ao mesmo tempo que falava, as faces tingiam-se-lhe de vermelho.
Mas o marido não deu por tal; e ela saiu.

D. Alexandrina morava num sobradinho estreito, onde a baronesa entrou envergonhada.
Fizeram-na esperar numa salinha de jantar atravancada por uma mesa coberta por um pano de aniagem, de franjas sujas, uns caixotes acolchoados, à guisa de divãs.
Nas paredes, colados sobre os mandarins do papel desbotado, cromos de folhinhas e uma gravura representando o Marechal Floriano Peixoto. Depois de alguns minutos de espera, entrou d. Alexandrina, uma mulherzinha magra e morena, quase sem queixo, de olhos redondos. A baronesa entrou, seguindo-a, para uma alcova, onde ardia uma lamparina em frente a um oratório. Como na sala de jantar, havia ali profusão de imagens coladas às paredes; somente, estas eram apenas de santos. Uma cortina de chita corrida encobria um leito de que se viam somente os pés. Ao cheiro do óleo da lamparina juntava-se o de manjericão, num copo.

D. Alexandrina retirou um baralho de cartas de uma gaveta, pousou-o sobre a mesinha redonda, junto à qual se sentaram e, pedindo com um gesto à baronesa que esperasse, voltou-se para o oratório e rezou baixo, com os olhos e o queixinho a tremer-lhe.
Finda a reza, a cartomante pediu à baronesa que partisse o seu baralho, de grandes cartas, e começou a operação.

– A senhora tem uma inimiga...

A baronesa fez que sim com a cabeça.

– É uma mulher má, que abusa da sua confiança...

A IntrusaOnde histórias criam vida. Descubra agora