Intolerável, o Feliciano, ao servir nessa tarde à mesa. Sem pronunciar uma única palavra e mais empertigado ainda que de costume nuns colarinhos que lhe roçavam as orelhas, percebia-se que no seu mutismo e seriedade ele sufocava de contentamento.
Quando o olhar de Argemiro o lobrigava espigado aos cantos, esperando ordens, desviava-se com uma impressão esquisita e que não podia definir. Durante todo o jantar, desgostou-o a figura limpa e correta do negro, aproximando-se e afastando-se maciamente, conforme as exigências do serviço.
Em frente de Argemiro o padre Assunção, encostando os ombros quadrados no alto espaldar da cadeira de couro, dilatava as narinas ao aroma das frescas rosas que alegravam a mesa.
“Para tornar uma hora agradável basta às vezes bem pouca coisa...” – pensava ele consigo.
“Uma toalha bem limpa... umas flores orvalhadas... esmaltes de louças reluzindo... e já os olhos e o olfato têm um repasto regalador... Amanhã, as coisas estarão de outra maneira, que é vezo de inimigos contradizerem-se em tudo. E então Argemiro confessará o que ainda pensa ignorar...”– Acredita, meu velho, estás hoje com a fisionomia diferente! Salvaste com certeza alguma alma do purgatório...
– Talvez... mas talvez sejam também efeitos de um sonho que tive esta madrugada. Imagina: eu estava sentado a um órgão de uma catedral enorme, e de tão peregrina beleza, que nenhuma haverá assim sobre a terra... Por toda a vastidão do templo estendia-se uma luz pálida, de alvorecer ou de luar, desenhando nas naves os rendilhados das rosáceas e as figuras dos vitrais... Eu tocava músicas solenes e de tão concentrado, tão profundo sentimento, que as lágrimas me caíam dos olhos aos pares, quando acordei, e tenho andado todo o dia com a alma cheia de harmonias. Se eu fosse moço, teria corrido ao Instituto de Música a ver se tornaria um dia possível tal ventura... Por que hão de vir tão tarde semelhantes sonhos?!
– Para que se não realizem.
– É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda... A arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula para as minhas febres...
– Escreve...
– A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago fechado à chave...
– Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!
– Nunca pensaste, por quê?!
– Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.
– Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução!
– Como eu protestasse, indignado contra a ideia (que sempre me foi muito desagradável), ela observou: Tu zangas-te! Pois eu estimo... Ele será o meu confessor! – Tudo isso vai longe...
– Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem... No meu sonho, esta madrugada, reviveram essas comoções... As imagens da catedral, todas de mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas que amei na minha adolescência e na minha mocidade...
As melodias gloriosas que eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas, ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras... Não eram só vozes humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do seminário... o badalar do sino para a minha primeira missa... e o rugido das sedas de tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão... Nunca me esqueci... foi como um ruflar de asas... Pois a minha alma transportava essas impressões em largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas os homens mais felizes da Terra?
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Intrusa
RomanceNo Rio de Janeiro do século XIX, Argemiro Cláudio, um rico advogado, coloca um anúncio no jornal, visando contratar uma governanta que pudesse trazer ordem à sua casa e ajudar na educação de sua filha, Maria da Glória. A única pessoa que responde ao...