4 - SONHO PERTURBADOR

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Num calmo entardecer da vila, a porta do apartamento Quatorze se abre e dela saem Girafales e Florinda. Enquanto caminham, o professor bigodudo de chapéu preto e terno cinza com pulover e gravata coloridos, diz enquanto acaricia o braço da dama apoiado no dele:
- Jamais imaginei que a senhora gostasse de passeios ao ar livre.
- Eu adoro! - Florinda diz sorrindo com seu olhar apaixonado enquanto ajeita seu avental verde com alças brancas - além disso pelo menos um tempo para assar o bolo que eu deixei no forno.
- Um bolo, preparado por suas lindas e delicadas mãos...
- Ah, sim!
- E para mim?

- Não. - Uma voz conhecida de repente entra na conversa.
- Para mim! - Seu Madruga surge apoiado no umbral da porta de sua casa, o apartamento 72 e continua caminhando até o lado de Dona Florinda.
- Por falar nisso, estava delicioso... Obrigado! - Ele diz acariciando o rosto da vizinha, que fica boquiaberta de tão constrangida, quando Girafales grita irritado e incrédulo:

- Olhe! Como se atreve?!

- É que eu já dei uma provadinha.

- E-eu não entendo! - Dona Florinda então intervém, demonstrando estar confusa.
- Não? - Madruga diz sorrindo para ela e Girafales grita irritado:
- Meu Senhor! - Girafales diz enfurecido

- Seu não. - Madruga responde - Eu sou dela.
- Aí! - Florinda diz constrangida - Eu estou muito desconcertada.
- Imagine como eu estou! - Girafales rosna furioso, quando Seu Madruga vai além:

- Meu amor, é inútil continuar fingindo.

- Mas, - Florinda indaga aflita - fingindo o quê?!

- Olha, o senhor deve estar bêbado. - Florinda deduz e Madruga responde sorrindo:
- Pois, bêbado de amor.
Olha, porque não corta ele de uma vez?
- Ele quem?
- Esse poste aí parado.

- Ta-ta-ta-ta-ta-ta-Tá! - Girafales arranca seu chapéu, enquanto explode de irritação com aquela cena absurda.

- Ou, mas é... Ai... - Florinda tenta se explicar enquanto o professor solta a bravata:
- Dona Florinda, espero que possa me dar uma explicação satisfatória!

- Eu vou dar! - Chiquinha entra em cena.

- Como? - Seu Madruga pergunta, enquanto ela caminha até ele, Florinda e Girafales ainda sendo questionada por seu pai:

- E o que você sabe?

- Mas, é claro - Chiquinha diz com seu jeito espalhafatoso de sempre - Se o Kiko me contou tudo!
Acontece que a Dona Florinda enganou o professor Girafales.

Diante das reações incrédulas de Florinda e Girafales ela continua:
- Sim, podem perguntar ao padeiro!

- Como? - Girafales tenta esboçar uma reação de tão perplexo.
- Mas, é... - Florinda também tenta encontrar palavras, quando ele grita colocando o chapéu e se retirando:
- Com licença!

- Espere! - Florinda grita apavorada, quando Madruga a segura pelo braço dizendo:

- Deixa pra lá. - Ele diz enquanto Florinda arregaça a manga de sua camisa e desfere sua tradicional bofetada - Já era tempo mesmo...

- Professor Girafales! - a vizinha encrenqueira grita e sai correndo atrás de seu amante, enquanto Madruga diz de recompondo e estufando o peito:

- Claro! São todas iguais. Primeiro o amor, amor... Amor. Depois...

- Vem a cacetada! - Um homem elegante que veste roupas de um noivo trajado em um smoking marfim e acetinado, diz enquanto toma uma taça de vinho num grande salão de festas luxuoso, onde estão somente ele, sua filha já adulta, acompanhada de um rapaz bem afeiçoado que tem algumas sardas no rosto e um rapaz, gordinho e simpático, acompanhado de seu pai, um homem de terno preto que carrega uma mala sempre à mão, mas do qual não se vê o rosto.
- Papai! - A jovem diz acenando para que os demais esperem ao fundo, enquanto vai até o homem que ainda entorna a taça de vinho em primeiro plano. - Já dispensamos os convidados e tudo mais. O senhor está bem?
- Estou sim, minha filha! - Dom Ramón, agora um homem bem-sucedido e trajado com uma glamorosa roupa de noivo de tecido acetinado que muito entristecido termina sua taça de vinho, diz debruçando-se sobre a mesa onde está:
- Muito obrigado, mas... Eu apenas quero ir para minha casa agora, sim?
- Claro que sim papai! - Francisca, agora uma mulher bonita e tão requintada quanto o pai diz convidando-o a se levantar:
- Chaves e eu levaremos o senhor para casa.
- Mas... E quanto a...
- Dona Clotilde saiu furiosa na limunise que a trouxe para o casamento, papai.
- É verdade, meu sogro! - Chaves diz sentando-se ao lado de Chiquinha, agora sua esposa e colocando a mão sobre o ombro de Seu Madruga - Não foi nada fácil para ela ouvir o senhor dizer não e ainda vê-lo sair correndo do altar enquanto dizia em voz alta que seu coração pertencia à outra....
- NÃO! - Madruga gritou, assustando Chaves, Chiquinha, Nhonho, agora um jovem fisiculturista de pele bronzeada com calça skin e camisa social de seda branca, e seu pai, Sr. Barriga, que agora tinha a fisionomia de um perfeito sugar daddy trajado com um terno slin preto.

- Não! - Madruga diz acordando no quarto de uma mansão, em Acapulco, cuja vista dá direto para a praia. Ainda é madrugada e mal se vêem pessoas na rua ao longe.
- Mas, o que... - Ele diz se levantando e ainda despido procura por um roupão no quarto iluminado pela luz fraca e amarelada de um pequeno abajur.
- Essa não! - Ele diz ao ouvir dezenas de mensagens em sua caixa postal, gravadas por sua filha e após uma bem ofensiva de Dona Clotilde que dizia "Você não faz ideia do que fez!"...
Madruga já ia deletar todas as mensagens na caixa postal, quando uma última mensagem começou a ser reproduzida.
Era uma voz conhecida, porém que apesar de todas as sensações e emoções conflitantes que o simples som daquela voz lhe causavam, ele precisava ouvir aquela mensagem.
Talvez não fosse tão inesperada ainda assim, aquela mensagem, mas era uma mensagem especial, talvez uma luz em meio as densas trevas que afligiam sua vida, uma mensagem que talvez, se fora ouvida antes, ou se algo em relação àquela mensagem que ele estava prestes a ouvir fosse feito antes, certamente tanto teria sido evitado, como por exemplo seu casamento ter sido cancelado no exato momento em que deveria dizer sim, numa suntuosa catedral da Espanha, onde sua ex-noiva, Clotilde, tanto sonhara se casar.
Coincidência ou não, naquele mesmo dia, outra pessoa, dizia não exatamente na hora de seu próprio casamento, numa grande celebração, porém em Acapulco, e essa mesma pessoa, era dona da voz que gravou a seguinte mensagem que agora era reproduzida no viva-voz:

- Seu Madruga, tudo começou depois daquele bilhete. Eu ainda lembro de que foi apenas uma confusão causada pelas crianças que trocaram aqueles bilhetes, mas... Artimanha do destino ou não... Um deles veio parar em minhas mãos e desde então, levando em conta o seu jeito de ser, e suas atitudes mais simples, algo mudou em mim.

Foi como se... Meu coração abrisse os olhos que olham para dentro, e foi por isso que aquilo, que fizemos sob aquele palco e terminamos em sua casa... Horas antes daquele Festival da Boa Vizinhança aconteceu!

[ UDG ] SEGREDOS: Sem Querer, QuerendoOnde histórias criam vida. Descubra agora