Serenel seguia seu caminho de volta para casa com um bico nos lábios e unguento na testa. Estava cabisbaixa, arrastando a mochila, seguida por sua sombra esticada pela luz do sol poente e por seu estimado casal de companheiros.
– Olha, não fica assim – acudia Audaz. – Amanhã será um novo dia, com novas histórias, e certamente as pessoas vão se esquecer do que aconteceu hoje.
– Eu levei um chute da Sukura, um monte de fora da professora Mira e um golpe de arco na frente da turma inteira... eles podem até esquecer, mas eu vou demorar um pouco mais...
– Ah, que isso – Beleluz abraçou a amiga. – Vamos dar um pulo na primeira altura. Meus primos podem conseguir uma vaga na Praça do Poente, a melhor padaria da cidade! Podemos tomar um chá de jambu e comer uns bolos de castanha. Sempre sai pães recheados a essa hora, se corrermos, podemos comprar uns quentinhos.
– Obrigada, Beleluz, mas não precisa. Vou voltar pra casa e fazer a maldita redação. Eu só quero que esse dia termine.
Audaz e Beleluz pararam na esquina em que suas jornadas se dividiam. Serenel seguia para sua casa na castanheira da segunda altura, Audaz ainda faria um contorno maior para chegar à dele. Beleluz pegaria a próxima ponte para o primeiro nível, onde vivia a nobreza.
– Ei, Serenel!
A snelliana olhou devagar por cima do ombro.
– Eu, é... – Beleluz parecia envergonhada. – Você confrontou a professora Matadeloz na frente da turma toda para me ajudar. Aquilo foi... muito corajoso e gentil da sua parte... Obrigada.
– De nada. Ela é uma caipora mesmo – Serenel esbanjou um sorriso e depois seguiu seu caminho.
Quando chegou em casa, seu pai ainda não havia voltado do trabalho e sua mãe fazia o jantar. Ela subiu as escadas até o banheiro, onde tomou um banho e, em seguida, foi até o quarto para tirar o uniforme da escola. Vestiu uma calça prateada de tecido fino e boca larga, mais confortável que o habitual, uma blusa vermelha de alças e um par de sandálias. Botou também um bonito pingente prateado de lua em seu cordão. Normalmente o usava por baixo do uniforme, mas o preferia à mostra em roupas casuais. Na hora do jantar, seu pai parecia entusiasmado com a inauguração:
– Vocês precisavam ver, era maravilhoso! O pessoal da quarta altura se superou desta vez. Havia uma enorme estátua da Peregrina Prateada, linda, serena e valente ao mesmo tempo. Ela estava segurando um arco apontado para além-mar, montada em um cutucurim gigante, tudo sobre o novo edifício. Quem conseguir morar ali terá uma vista privilegiada da cidade, poderá até ver o palácio na primeira altura.
– Que bom, querido. Seu dia foi ótimo, então.
O pai assentiu com a cabeça:
– Mais um dia perfeito na nossa cidade perfeita.
– Ah, sim. Mais um dia glorioso em Verdouro, onde nada dá errado – Serenel tinha tom de deboche na fala, enquanto rolava os grãos de feijão de um lado para outro no prato. O pai percebeu o sarcasmo na filha.
– O que foi, Serenel? Aconteceu alguma coisa?
A jovem snelliana se balançou na cadeira, coçou os cabelos e, sem graça, tentou se explicar:
– Tem hora que vocês ficam tão animados com "a beleza" de Verdouro, em como ela é "magnífica" e "espetacular", que parece que vocês se esquecem dos problemas óbvios! A maioria dos snellianos vivem na quinta altura, em pequenos casebres, muitos mal tem o que comer. Vocês sabem pôr que?
– A maioria é composta de lavradores e mineiros. Eles têm que descer até a superfície para trabalhar, ficam mais perto da última altura da cidade.
– Ai, pai. Não venha com essa! – Serenel estava perdendo a paciência. – A aristocracia e a nobreza não os querem perto demais, isso sim. Por isso construíram dois níveis entre nós e eles. Sabe como chamam a quinta altura? De "pinga-fogo". Claro, eles vivem abaixo da altura dos artífices e toda vez que os ferreiros ascendem suas forjas, pingos de metal incandescente caem sobre as casas. É ridículo viver assim. Não me admira que haja tanta violência surgindo na cidade.
– Violência? – o pai tentava acalmar a filha. – Minha filha, a guarda faz patrulha o dia inteiro. Faz tempo que não escuto sobre assaltos na segunda altura, você não tem com que se preocupar.
– Não tenho? O senhor sabia que catorze jovens desapareceram sem deixar vestígio no pinga-fogo? Ninguém da guarda sabe explicar o que aconteceu, só se fala disso na escola.
– Isso é terrível, minha filha – disse a mãe, um pouco aflita. – Mas, veja bem, a quinta altura é muito maior que a segunda. Mais de dez vezes maior, com muito mais snellianos. Então, faz sentido ter mais problemas lá, você não acha.
O raciocínio de sua mãe era de uma simplicidade cansativa, e Serenel não queria prolongar a discussão:
– É, talvez, mãe... sei lá. Apenas não parece justo muita coisa nesta cidade. Eu vou subir pro meu quarto.
Assim, a jovem deixou a mesa com seus pais apreensivos. Ela subiu as escadas devagar, entrou no quarto e se jogou sobre a cama. Pela janela, a luz do luar que a Peregrina Prateada fazia deixava rastros sobre a penteadeira e as paredes. Serenel deitou de costas, pôs os braços sob a cabeça e observou o teto escuro enquanto meditava. Por que ela não se encaixava? O que era aquela angústia grunhindo constantemente no fundo do seu coração? Muitas vezes ela queria simplesmente sentir o mesmo que seus pais; que a vida em Verdouro era boa do jeito que era e não querer tentar mudá-la, não querer tentar melhorá-la. O que havia de errado? E o pior, por que pensar em mudar um mundo quando simplesmente não podia? Não tinha força, dinheiro ou poder. Era uma ninguém, que nem conseguia se impor aos professores da escola. Às vezes, mudar o mundo parecia mais fácil do que fazer o dever de casa, porém a realidade mostrava sua face de forma abrupta e dolorosa como uma pedrada no escuro.
Nesse momento, uma pedra veio voando pela janela e acertou Serenel na cabeça.
– Ai! – A snelliana se levantou correndo e olhou pela janela, mas não viu ninguém. Em seguida, pegou a pedra nas mãos, era escura e tinha metade do tamanho de seu punho. Porém, quando a observou melhor contra o luar, viu inscrições com caligrafia corrida e talhada com faca:
"Achei uma saída. S."
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Prateada ou Júbilo de Jaci [Completo!]
FantasyApós séculos de guerra entre o povo caipora e os curupiras pelo controle da floresta, ela surge como uma esperança de paz. Contudo, para poder cumprir sua missão ela primeiro precisa entender a si mesma...