Muitas horas haviam se passado desde a vitória de Sukura sobre o campeão da Caverna do Assovio. Ela andava de um lado para o outro do seu quarto, girando a espada com o punho direito, imaginando quais eram os planos do Rei dos curupiras para ela naquele lugar.
– A senhora precisa se acalmar – disse uma snelliana que carregava braceletes e gargantilha de ferro e que recolhia a roupa de cama. – A luta já passou, a senhora venceu... o que mais pode acontecer?
– O que pode acontecer? – se irritou, Sukura. – Estou prisioneira em um quarto de luxo na cidade inimiga e agora matei seu campeão. Tenho todos os motivos para ficar nervosa.
– Mas eles disseram que precisam da senhora. Se precisam, não irão fazer nada de mal.
Sukura avançou sobre a snelliana, agarrou-a pelos ombros, dando-lhe um tremendo susto:
– Pavla, você não está entendendo, – Sukura sussurrava e olhava compulsivamente para porta, temendo que alguém as estivessem escutando – eles querem que eu mate snellianos. Querem que eu me ajoelhe perante o Rei Assobiador, jure lealdade e use a espada para atacar Verdouro.
A serva baixou a cabeça, se ergueu com cuidado, catou as roupas sujas e caminhou até a porta, tintilando seus grilhões. Antes de fechá-la atrás de si, uma sombra de forte pesar cobriu-lhe a face:
– Talvez devesse.
As palavras daquela snelliana inicialmente chocaram Sukura, que contemplava o espelho da penteadeira. Diferente dela, Pavla foi entregue como prisioneira pela corte do Rei Almasolar para ser explorada e depois morta. Verdouro a havia abandonado, feito-a de sacrifício em nome de um acordo secreto entre os dois monarcas, era de imaginar que não guardasse mais nenhum afeto pela cidade natal.
A noite avançava na Caverna. Pelo menos era a impressão de Sukura visto ser muito difícil diferenciar dia e noite no interior daqueles grotões. Seu quarto ficava no alto de uma estalagmite reestruturada em uma torre natural em meio a um complexo de escavações que seriam a fortaleza do Rei Assobiador. A fortaleza se chamava Tupã-Beraba na língua curupira, que significava algo como "trovão resplandecente" e ocupava a maior parte da Caverna do Assovio, onde muitos daqueles monstros viviam. Eles tinham hierarquias militares, distribuíam funções e se organizavam em turnos de serviço, como em um quartel. Os curupiras menores cuidavam de serviços de apoio como limpeza, movimentar animais, obras e reparos. Os maiores e sem linhagem nobre faziam serviços de carga, forjavam armas ou eram recrutas do exército. As altas patentes ficavam para famílias próximas ao Rei. Sukura observava curupiras movendo um bando de cervos brancos para uma espécie de curral subterrâneo quando foi surpreendida com um assovio vindo dos corredores da fortaleza. O som era alegre e com uma cadência animada, quase festiva, mas mesmo assim um calafrio correu por sua espinha.
– Sukura! A brava guerreira caipora, que bom te encontrar – um enorme curupira albino com juba vermelha que entrava pela porta sem bater.
– É o único lugar que eu estou autorizada estar – respondeu secamente.
– Ha, Ha, Ha! Você é demais. – O monstro encheu um copo de uma bebida fermentada de mandioca que estava servida numa mesinha e tomou um gole. – Aquilo que você fez na arena foi brilhante: dramático, ousado, uma transformação cheia de luz... foi incrível, os curupiras agora gritam o nome de Sukura por toda a caverna como sua grande heroína. Bem, quer dizer... o nome de Ita-Una.
– O que isso quer dizer?
– Ora, achei que estivesse tendo aulas de língua clássica. – O Rei deu mais um gole da bebida e limpou a garganta – Significa "pedra negra", ou "metal negro", sabe, a língua clássica não diferencia muito bem pedra de metal. Particularmente eu prefiro pedra, pois dá um simbolismo ao que iremos realizar. Você será a pedra, o alicerce da reforma que iremos fazer na Floresta Eterna e trazer as caiporas de volta a sua real ligação com a Mãe, com a mata. Curupiras e caiporas se unirão novamente contra o verdadeiro inimigo: os homens, os devastadores de florestas. Um curupira nunca poderia fazer isso e sinto-me um idiota de nunca ter compreendido antes: apenas uma caipora pode subjugar as outras caiporas. Uma caipora portando um artefato vindo de deuses esquecidos. É perfeito, é poético! Você como caipora deveria estar...
– Eu não sou caipora! – explodiu Sukura.
O albino virou-se com o sorriso assustador e olhar arregalado na direção dela. Um novo calafrio percorreu o corpo da snelliana. O monstro caminhou devagar e era como se o som da janela tivesse parado de entrar no cômodo, os passos de pés invertidos da criatura podiam ser ouvidos claramente, pesados, retumbantes, mesmo sob o chão de pedra. O curupira botou seu rosto a poucos centímetros do de Sukura e ela ficou parada encarando aquele olhar sinistro, os dentes afiados por onde escorria saliva misturada com bebida tudo envolto numa juba que lembrava labaredas.
– Não teste minha paciência, caipora – falou na língua bárbara, que ele chamava de clássica. – Não queria ter que explicar a hipocrisia de seu povo com essa mudança de denominação irrelevante. Você acha que é mais que uma caipora porque usa roupas ou sabe lutar com armas de aço? Seus líderes são snellianos, seus chefes, seus aristocratas, seus nobres, seus Barões e seus reis são snellianos. Como vocês chamam mesmo: habitantes da primeira altura? Ha! Caiporas que aprenderam a explorar outras caiporas para poderem se autodenominar não-caiporas. E quanto a você? Moradora dos subúrbios, desprezada, esquecida, abandonada...
As palavras do curupira começavam a mexer no íntimo de Sukura. Ela se agarrava ao cabo da espada e recuava pelo quarto, tentando não ouvir o discurso do Rei.
– Você, Sukura, é menos que uma caipora, é menos que um curupira, é menos que uma escrava: você é uma escrava que nem sabe que foi escravizada.
Sukura se ajoelhou e levou a mão livre ao rosto tentando segurar as lágrimas para que seu inimigo não as visse. As palavras do Assobiador traduziam tudo o que a snelliana sentia desde que nasceu: as indiferenças, as dificuldades... o abandono. Particularmente o abandono de sua melhor amiga Serenel lhe vinha à mente e aquela ferida recente era a que mais doía. Talvez sua amizade com Serenel fosse a última esperança que Sukura tinha para encontrar benevolência naquela sociedade, mas agora, era tarde demais.
Ciente de seu triunfo, o Rei Assobiador se afastou e voltou a um tom mais pacífico e de volta a língua moderna:
– Porém, o destino lhe sorriu. No momento em que você tocou nesta espada você ganhou a oportunidade de escolher seu destino: ser Sukura, a órfã, pobre, a abandonada do Pinga-Fogo, que libertou Boitatá e será julgada pelos seus crimes, ou ficar na Caverna do Assobio e se tornar Ita-Una, a Princesa das Trevas.
"Princesa?"
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Prateada ou Júbilo de Jaci [Completo!]
FantasiaApós séculos de guerra entre o povo caipora e os curupiras pelo controle da floresta, ela surge como uma esperança de paz. Contudo, para poder cumprir sua missão ela primeiro precisa entender a si mesma...