UM DIA MAGNÍFICO - 08

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Serenel encarava o rosto espantado daquele homem, que o encarava de volta cheio de admiração. Era um rosto jovem, sem rugas ou mesmo pelos faciais. Seus lábios eram finos, o nariz pequeno, e os cabelos muito mais finos do que os dela, com um tom castanho escuro. Ele se levantou do chão e tocou as peças metálicas que cobriam o corpo da snelliana:

– Isso é incrível. Nunca pensei que uma caipora seria a escolhida de Jaci.

– Escolhida? – Serenel estava confusa. – Como assim? Você pode me explicar o que está acontecendo aqui?

– Você não vê? – perguntou o jovem, com alegria. – Jaci te escolheu! Você é o júbilo de nossa deusa, aquela que trará alegria de volta à nossa terra. Você é o Júbilo de Jaci!

A snelliana encarava o arco e suas roupas com ceticismo. Ela não sabia explicar o ocorrido e as palavras daquele homem não faziam o menor sentido. Mesmo que fizessem, ela não tinha tempo a perder.

– Olha, cara. Eu sinto muito, mas eu tenho que ir. Minha amiga deve estar machucada por causa do ataque daquela cobra e eu preciso encontrá-la.

Serenel deu as costas e começou a subir a ribanceira, quando foi interrompida:

– Não, espere! Você não pode sair daqui assim. Boitatá ainda está viva e agora, cheia de raiva. Ela precisa ser detida antes que cause mais destruição. Venha comigo, eu irei te mostrar como usar o Arco Lunar e assim você poderá destruir aquele monstro.

– Eu não tenho tempo pra isso! – Ela empurrou o homem com o arco. – Sukura ainda deve estar de baixo dos escombros, preciso ir agora!

Assim, Serenel subiu a ladeira correndo, deixando o rapaz para trás. Após algum tempo de corrida, a jovem alcançou novamente a aldeia abandonada. Estava tudo destruído. Boitatá, ou seja lá como se chamava aquela serpente, havia posto fogo no sapê e esmagado as estruturas com seu corpanzil. O pior de tudo era o estado do templo onde encontraram a espada: os escombros formavam pilhas em círculo ao redor da cratera por onde Serenel havia sido arremessada.

– Sukura! Sukura! Está me ouvindo?

A snelliana largou o arco no chão, que magicamente retornou à sua forma de argola, e removeu a tiara para que pudesse ter mais mobilidade. Então, começou a mover pedra por pedra das pilhas de escombros. Algumas eram pesadas demais, outras estavam cravadas muito fundo na terra. A fumaça dos incêndios começava a cobrir a luz do luar e o esforço contínuo já fatigava seus braços. Após uma hora de busca, a esperança de Serenel começou a desaparecer e as lágrimas começaram a rolar de seu rosto. Em meio aos soluços de tristeza, ela ouviu alguém se aproximar. Era o humano que havia lhe salvado da serpente. Ele estava se apoiando em seu cajado e seu semblante severo estava iluminado pelas chamas.

– Eu sinto muito por sua amiga.

– Não diga isso. – Serenel limpou suas lágrimas, mas continuava ajoelhada e erguendo pedras – Sukura é grande e forte, a snelliana mais durona que eu já vi. Se eu consegui sobreviver ao ataque da serpente, ela também conseguiu. Deve estar apenas presa em algum lugar e...

– Sozinha, você vai levar dias até remover todas as pedras.

– Bem, ao invés de ficar parado aí, você podia me ajudar.

– Ficaríamos dias vasculhando e não temos esse tempo a perder. Além disso, não sou exatamente um infante da guarda com força para...

– Então o que você é?! – Exclamou Serenel, virando-se rapidamente para o jovem, com lágrimas escorrendo de seus olhos e seus dentes trincados.

Um silêncio solene se fez presente e os dois se encaram. O vento não apenas fazia o manto do jovem tremular como uma bandeira, como também empurrava a fumaça das casas, permitindo que a luz da lua pudesse ser vista novamente. Então, depois do pio auspicioso do urutau vindo da mata, ele respondeu:

– Meu nome é Shamash e sou um homem de além-mar. Estou nesta terra que vocês chamam de "Floresta Eterna" faz alguns meses.

– Além-mar? Quer dizer, de outro continente? Isso explica porque você não parece com os homens que vivem aqui. – Para Serenel, o jovem vestia roupas muito sofisticadas para as tribos de gentios que rodeavam Verdouro e, apesar de ele falar a língua nativa com um sotaque muito carregado, parecia ser mais culto e ter mais desenvoltura.

– Eu também sou sacerdote da deusa-lua e minha ordem me designou para encontrar aquela que deterá as Sete Maldições do Esquecimento, aquela que empunhará o Arco Lunar contra seus os inimigos, aquela que salvará o mundo: o Júbilo de Jaci. E, pelo que pude ver esta noite, eu acredito que minha busca terminou.

Serenel limpava as lágrimas enquanto ouvia as palavras do acólito. Maldições? Jaci? Nada daquilo fazia sentido. Ela era apenas uma jovem snelliana, ansiosa para conhecer o mundo e tentando não se meter em encrenca. E aquilo tudo soava a muita encrenca.

– Você está dizendo que eu sou algum tipo de "escolhida", é isso? Desculpa, Shamash, mas tudo isso é um grande engano. Eu só usei o arco porque a gente estava à beira da morte, de outra forma nunca teria encostado nesta coisa. Eu odeio arcos, sou péssima com eles, pode perguntar a qualquer um. Além disso, como eu posso ser a escolhida de uma deusa que nunca ouvi falar?

– Ah, mas você ouviu falar sim – disse sorrindo. – Na luta contra Boitatá você fez uma prece para Jaci e Ela te atendeu imediatamente. Ela te deu poder para lutar, lutar em seu nome e salvar todos nós da destruição.

De repente, o rosto da snelliana perdeu a cor e ela se pôs de pé num sobressalto:

– Como você ouviu aquilo? Não é possível, eu apenas murmurei algumas palavras para a Peregrina Prateada.

– Ah, aí está! – Shamash estampou um semblante de triunfo. – A "Peregrina Prateada". É assim que as caiporas chamam Jaci? Analogia interessante, visto que ela puxa a lua através dos céus.

Então, tudo ficou claro para Serenel: aquela tal Jaci era a Peregrina Prateada, apenas com uma designação diferente trazida daquele estrangeiro. A narrativa daquele homem, surpreendentemente, começava a fazer algum sentido.

– Olha, tudo isso é muito interessante, mas eu ainda tenho uma emergência nas mãos e não posso pensar nisso agora.

– De fato, você tem. – O jovem apontou para o cajado em direção à floresta. No escuro da noite, via-se um clarão amarelo serpenteando através das árvores. O movimento era difuso e oscilante, contudo, percebia-se que Boitatá estava indo numa direção específica: na direção de lindos veios dourados que cintilavam entre as copas das árvores.

– Ai, não. Verdouro!

– Boitatá irá atacar a cidade. Todos lá irão morrer queimados e terão seus olhos absorvidos para o interior da criatura. – Shamash voltou a uma postura severa. – Apenas o Júbilo de Jaci pode detê-la.

– Como você sabe disso?

– Por que Boitatá é a primeira maldição do Esquecimento.

Tudo estava acontecendo rápido demais e ela tinha que decidir entre ajudar sua amiga ou salvar a cidade. Serenel olhou com pesar para as pilhas de escombros e então, com desesperança na voz, tomou a decisão mais difícil de sua vida:

– Desculpa, Sukura...

Shamash deu um assovio em direção da floresta. Instantes depois um enorme porco-do-mato, com pelos castanhos, olhos azuis e dentes protuberantes, surgiu da escuridão, trotando feito um cavalo. Quando se aproximou, o estrangeiro lhe fez um carinho atrás da orelha e disse algumas palavras numa língua desconhecida.

– O que é isso?

– Este é Tapioca, nossa montaria.

Serenel hesitou ao se aproximar do animal.

– Por que a surpresa? – perguntou o rapaz. – Os nativos com que convivi todos esses meses me disseram que as caiporas estavam acostumadas a montar caititu. Eu o adestrei exclusivamente para o Júbilo de Jaci.

A fera grunhiu e fungou a mão de Serenel com alegria. A snelliana retribuiu com um carinho e, em seguida, a dupla montou em sua garupa. Shamash deu um comando e Tapioca saiu em disparada, galopando em direção de Verdouro.

– Agora, vamos conversar sobre essa história de me chamar de "caipora" o tempo todo.

Prateada ou Júbilo de Jaci [Completo!]Onde histórias criam vida. Descubra agora