UM DIA MAGNÍFICO - 05

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Uma figura soturna avançava através dos calçadões da segunda altura, evitando ser vista pelos vizinhos fumando cachimbo na calada da noite ou por guardas que faziam patrulha até tarde. Ela se esgueirava entre becos, evitando o luar ou as luzes das lamparinas espalhadas pela cidade até a ponte de descida para a terceira altura. Aquele nível abrigava os grandes serviços da cidade de Verdouro, como escolas, casa da guarda, acendedores, vendas, boticários, escribas, faxinaria e qualquer outra atividade que poderia ser de interesse dos habitantes do segundo e do primeiro nível. Atrás de um açougue havia a ponte de descida. Na quarta altura se encontravam os artífices como ferreiros, marceneiros, pedreiros, carpinteiros, alquimistas e todos aqueles que transformavam algum tipo de material em produto acabado. Grandes forjas eram fixadas em troncos largos por toda plataforma, pois os ferreiros eram a classe de artífice mais comum de Verdouro. Os snellianos trabalhavam brilhantemente com diversas ligas de bronze, aço e ouro. Havia inclusive uma liga muito específica conhecida simplesmente como "aço hanstaden" com a qual era possível forjar as melhores espadas que o mundo já havia visto, mas cujos segredos de fabricação eram guardados por uma importante casa da nobreza.

Por fim, atrás das forjas descia a ponte para a quinta altura: o "pinga-fogo", o imenso nível constituído de casebres mal dimensionados, construídos muito próximo uns dos outros para aproveitar o máximo do espaço livre. Os telhados eram todos marcados por pontos escuros espatifados, resultado dos respingos de metal derretido incandescente, vindos das forjas da quarta altura. Era onde vivia a população mais pobre de Verdouro, normalmente mineiros, lenhadores e camponeses que precisavam descer até a superfície para trabalhar.

Após cruzar uma série de becos e arruelas difíceis de caminhar, a figura sombria se esgueirou até um parquinho, construído para crianças, com balaços e gangorras. No entanto, os balanços estavam todos quebrados, com as correntes partida pela metade, e a única gangorra que funcionava estava depredada, riscada e com o corrimão amassado.

– É isso que você vai usar para ir na superfície? – perguntou Sukura, repentinamente, surgindo de trás de um escorrega sujo e pichado. – Blusa de alça e sandálias?

Serenel foi para a luz com um pulo:

– Ai! Que susto, Sukura! Quer me matar do coração?

– Tá assustada com o quê? Quem mais poderia ser? – Sukura vestia calça de couro, botas e um colete de couro de manga comprida.

– Eu sei lá! Tem um monte de gente desaparecendo nesta região, e eu não quero ser a próxima.

– Ah, sim. Que novidade – Sukura botou as mãos na cintura e jogou os cabelos para trás. – A princesinha da segunda altura está com medo de andar sozinha nos becos escuros do pinga-fogo.

Serenel ignorou a implicância da amiga e observou rapidamente os arredores, verificando se alguém às observava:

– É verdade? Você encontrou?

– Não foi o que eu disse na mensagem?

Os olhos de Serenel brilharam por um instante e, com um sorriso, pediu:

– Mostra.

Sorrateira, Sukura foi em direção às vielas, liderando o caminho por entre caixotes e tábuas abandonadas e espalhadas desordenadamente pelo chão. A ronda da guarda já não era um problema, pois a quantidade de militares para cobrir aquela região era proporcionalmente inferior à alocada para a primeira e segunda altura. Seria muito azar das duas se esbarrassem com uma guarnição naquele mar de arruelas.

Após alguns minutos de caminhada, Sukura chegou a uma estrutura frágil e acabada pelo tempo, com telhas faltando no topo e uma porta de madeira comida pela chuva. A corrente que prendia a porta estava apenas simulando estar trancada, e com um pouco de esforço a porta se dobrava o suficiente para que a corrente contornasse o trinco. Do lado de dentro da estrutura, descendo preso a uma mangueira, havia uma espécie de túnel feito em madeira, com pouco mais de um metro de diâmetro. Em seu interior, pequenas fissuras foram talhadas na madeira para servir de escada vertical.

– O que é isso? – perguntou Serenel, enfiando a cabeça dentro do túnel para olhar de perto.

– É uma via de detritos. Os mineiros usam para lançar de volta à superfície os excedentes dos minérios.

– Como você sabe disso?

– Meu pai era mineiro, esqueceu? – Sukura havia perdido a família dois anos antes para um assaltante e Serenel se sentiu envergonhada de ter lhe trazido tal lembrança.

As snellianas observavam o túnel com um calafrio na espinha. Era como encarar uma garganta de uma fera monstruosa pedindo para que se jogassem.

– Sukura, eu não sei... se devemos fazer isso.

– Não sabe? – perguntou a grandalhona, revoltada. – Nós falamos de conhecer a superfície faz anos! Finalmente temos a oportunidade e você quer desistir agora?

– É que, isso é muito perigoso. Não sabemos o que vai ter lá fora. E se houver curupiras? Ou se os soldados nos virem e contar para nossos pais? Eu nem sei o que é pior...

Sukura agarrou os ombros da amiga com força e a fitou no fundo dos olhos:

– Serenel, essa é nossa oportunidade de ver o mundo. Ver se ele é tão caipora quanto esta cidade. E se for,... – Sukura tinha um brilho intenso nos olhos – ...descobrir como tirar proveito disso!

Serenel empurrou os braços da amiga:

– Eu não quero "tirar proveito" do mundo, Sukura. Eu só queria saber como ele é, mas acho que dessa forma é muito arriscado. Podemos criar uma grande confusão sem necessidade.

– Sem necessidade pra você, princesinha! – Sukura se irritou e começou a descer pela via de detritos. – Volta então pra sua família perfeita, para discutir as soluções da vida tomando suco de maracujá em suas camas de penas! Eu vou lá embaixo e, quando eu encontrar meu destino, vou esfrega-lo na cara desta sociedade hipócrita!

Serenel permaneceu um tempo parada ouvindo o histerismo da amiga. Suas palavras faziam um sentido irritante. Talvez as motivações da amiga, que sempre viveu na pobreza, fossem mais fortes do que as críticas infantis que ela tinha com os pais na mesa de jantar. No entanto, um sentimento de companheirismo se apossou de Serenel. Talvez, mais do que sua curiosidade, ela devesse fazer aquilo por Sukura.

– Ei! Ei, espera! Eu vou com você!

Assim, as duas snellianas atravessaram o túnel escuro até a superfície.

Prateada ou Júbilo de Jaci [Completo!]Onde histórias criam vida. Descubra agora