Capítulo 7

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Acalmei a Gabi por telefone e refiz minha rota para o hospital em que a dona Olga estava internada. Deus que me perdoe, mas no fundo, fiquei aliviado por não ter perdido o nascimento do nosso filho. Não que eu não estivesse preocupado com dona Olga: estava. Mas tenho mesmo este defeito de pensar só no que me convém. Neste momento, fiz outra prece, talvez pelo peso na consciência por meu pensamento egoísta: "Que dona Olga esteja bem. Amém." Para um homem cético, eu estava fazendo muitas orações aquela noite. E eu não podia imaginar que ainda faria muitas mais, antes que o dia amanhecesse.

Cheguei assustado no hospital. Poucas pessoas naquele horário, já passava das dez da noite. Televisão ligada sem nenhum volume, passando um programa qualquer. Paredes brancas, silêncio. Nunca gostei do clima de hospital, e começava a pensar que a Gabi fez bem em optar por este parto "a domicílio". Procurei pela Gabi na sala de espera, mas não a encontrei. Liguei, mas ela não atendeu. Fui até a recepção onde uma atendente com cara de poucos amigos, e visivelmente com sono, digitava algo no computador.

- Boa noite, minha esposa está acompanhando minha sogra que está aqui, mas não consigo encontrá-la. O nome dela é Gabriela Montoz.

- Só um minuto. – disse demonstrando pouco interesse.

- Sim. Está acompanhando minha sogra, Olga.

- Olga de quê?

- Não sei. Deve ser Olga "alguma coisa" Montoz.

- A Gabriela que você procura é Gabriela Montoz Oliveira?

- Isso! Onde ela esta?

- Essa Gabriela esta registrada como paciente, está em cirurgia.

- Como assim?

- Ela foi registrada há 10 minutos, está fazendo uma cesariana de emergência.

- Meu Deus, aconteceu alguma coisa? – Eu suava frio, novamente não sentia minhas pernas, e senti uma dor súbita e aguda na barriga, como se tivesse levado um soco.

- Não tenho como informar, senhor. Se quiser, posso pedir para o médico vir falar com o senhor quando o procedimento terminar, mas para isso será necessário aguardar.

- Obrigado. - disse, sem opção, me sentando em uma das cadeiras em frente à televisão. Meus olhos estavam cheios de água, como quando eu apanhava dos colegas quando criança, mas me recusava a chorar. Esfregava-os, com as mãos, quando eu não estava com os dedos entrelaçados em frente ao rosto. Tentava me distrair, afinal seria uma longa noite. Não sabia o que havia acontecido, como estava a Gabi, dona Olga que me acolheu como a mãe que eu não tinha mais, meu filho, e o pior, era que eu não podia fazer nada a respeito disso, se não esperar.

A cada meia hora, perguntava a recepcionista se tinham alguma informação, mas ela sempre dava a mesma resposta: Nada. Em alguns momentos, levantava, andava em círculos, olhava através dos vidros do hospital para a rua escura e levemente molhada por uma garoa fina que agora começava a cair.

Tentei fazer algo em que eu era péssimo: pensar positivo. Iria me esforçar nisso. Relembrava bons momentos, para que eles renovassem a esperança de que tudo daria certo. Era assim que a Gabi era: acreditava no melhor das pessoas e das ocasiões.

Lembrei-me de quando vi a Gabi pela primeira vez: estávamos na faculdade, participando de um simpósio sobre escrita acadêmica. Eu, estava lá apenas interessado em acumular horas complementares, mas ela anotava atentamente tudo que o professor falava. Era uma sala bem grande, com carteiras individuais, e as nossas estavam lado a lado. Na verdade, eu deveria estar do outro lado da sala, com o pessoal da minha turma de administração, mas como cheguei atrasado, acabei sentando mais a frente, num dos poucos lugares que estavam disponíveis. A Gabi fazia questão de listar cada tópico, cada observação, dentro de um esquema de cores diferentes de canetas que ela faz até hoje e nunca consegui entender. Marcava o essencial com marca texto, fazia anotações a lápis para pesquisar posteriormente, com uma letrinha exemplar, como de professora de ensino fundamental. Lembro que o que me chamou atenção é que caderno caprichado assim, só o da Mana. Aliás, acho que a Gabi se daria muito bem com a Mana, mas não com essa Mana de hoje, e sim com a Mana do passado, a Mana que ela já foi. Neste mesmo dia, o professor pediu que fizéssemos duplas para treinar a escrita, e por falta de opção ela veio parar comigo.

Acredito que as coisas acontecem porque tem de acontecer mesmo. Afinal, eu não tenho nada em mim que me fizesse acreditar que eu conquistaria a Gabi. Não que eu tenha problemas de autoestima: me acho até bem bonito, acho importante falar. Sou alto, tenho um corpo dentro dos padrões, cabelos escuros que insistem em fazer cachos nas pontas, olhos suaves e as covinhas que a Gabi tanto gosta. Digo que não acredito que a conquistaria por sermos o oposto: ela ama doce, eu, salgado. Ela ama calor, eu, o frio. Ela é toda sorriso, eu, sempre sério.

Toda minha vida fui visto como o cara caladão. Não demonstrava sentimentos, bons ou ruins, não chorava. Estava sempre indiferente a qualquer emoção. Já a Gabi era uma montanha russa de sentimentos, dessas pessoas que riem e choram ao mesmo tempo sem saber porque. De um extremo a outro, sem repressões. Por ser reflexiva e sempre gastar muito tempo pensando "filosoficamente", a Gabi era um tanto melancólica ás vezes, assim como dizem ser todos os grandes artistas.

A Gabi também não era de falar muito, descontroladamente. Ela usa as palavras para falar as coisas imprescindíveis, mas todo o resto ela fala com o olhar, com uma voz calma, doce e meiga. Por ser tão transparente, fiquei chocado por não ter percebido antes sua situação quando foi até o doutro Cleber.

Tudo nela é adorável. Os olhos grandes e castanhos, que ficam esverdeados no sol, as bochechas fofinhas e rosas, que insistem em não se bronzear, os cabelos soltos com as ondas caindo-lhe pelos ombros, os vestidos de menina, os pequenos brincos de coração ganhados da mãe... Tudo na Gabi era doce. Tão doce que não sei como o amor aconteceu entre nós, entretanto lá estava ela, cumprindo o dever de reconduzir-me ao caminho do bem.

Nas ultimas semanas eu havia sim sido negligente. Deixei a Gabi nas mãos da dona Olga, e valorizei mais meu trabalho que minha família. Mas ali, naquele hospital, prometi a mim mesmo que eu seria diferente, seria melhor. A Gabi era tudo que eu tinha, e iria cuidar, amar e respeitar por todos os dias da minha vida, até que a morte nos separasse. Isso: Iria me casar com ela. Na igreja, no papel, com tudo que ela quisesse. Iria fazer tudo que pudesse para compensar o tempo perdido, e me sentia feliz por não ter demorado tanto para perceber meu erro.

O médico demorava, já passava das quatro horas da manhã, e ainda não havia tido nenhuma informação. Estava cada vez mais preocupado, e mais uma vez fui até a atendente. Antes de perguntar, ela respondeu:

- Ainda nada. Já avisei o médico, o senhor tem que aguardar. Vai na cafeteria, toma um café, dá uma relaxada... depois o senhor volta.

Segui o conselho. Estava sem apetite, mas precisava comer algo, afinal não havia jantado na noite anterior. Pedi um café enquanto sentava num balcão da cafeteria, olhando passar na televisão as primeiras notícias do dia. Depois, fui ao banheiro, e lavei o rosto. Olhei no espelho e vi que estava horrível: os olhos fundos contornado por olheiras muito profundas e arroxeadas, cabelo despenteado e a roupa bastante amassada. Sequei o rosto e subi novamente a recepção. A atendente me deu um sorriso de canto, mais por pena que por simpatia. O relógio indicava quase 6h quando voltei ao balcão.

- Desculpe, o médico responsável pelo atendimento já terminou seu plantão...

Fiquei possesso de raiva, e ela viu que eu estava preparado para armar um escândalo, com palavrões e gritaria, e interviu antes que eu pudesse reagir:

- Mas o médico que assumiu o caso já está vindo falar com você.

Em menos de cinco minutos, um doutro jovem, asiático, com cara de estagiário, veio falar comigo. Em seu jaleco, um bordado: "Dr. Allan" e um sobrenome que não consegui ler.

- Bom dia, desculpe a demora. O senhor é o acompanhante da paciente Gabriela Montoz, certo?

-Sim, como ela esta?

- Segundo a ficha, ontem ela veio acompanhando uma senhora, e sua bolsa estourou. Ela foi levada para a emergência e, como a sua pressão estava muito alta, precisamos fazer a cesariana para evitar riscos maiores. O que você precisa saber: tanto ela quanto o bebê estão bem, mas ambos estão na UTI. 

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