Capítulo 18

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Mais uma vez, os pouparei e me pouparei de detalhes menos relevantes. Pelo que foi constatado, a Gabi tentou ultrapassar um outro carro, entrando na contra mão, e acabou batendo num caminhão. O Lucas não estava preso na cadeirinha e foi arremessado para fora do carro, caindo em um córrego imundo que estava abaixo da ponte em que ela transitava.
A Gabi havia matado nosso filho. Ou era o que eu achava.
Entrei na sala gélida sem saber como consegui chegar ali. Meu corpo todo tremia, e não sentia ao menos meu pés tocarem o chão. Caminhei entre corredores de corpos cobertos sob macas de metal, até chegar a um pequeno montinho de lençóis. Mesmo coberto, reconheci o Lucas. A cena daquele homem puxando o lençol, revelando corpo morto do meu filho nunca saiu da minha mente. Se fecho os olhos, consigo ver a cena se repetindo infinitamente. Não há como descrever a sensação, mesmo se eu fosse bom em usar as palavras.
Toquei sua pequena mão, agora rígida e gelada. Os lábios muito roxos, e um hematoma na testa também. Tentei levantar um de seus pés para cheirá-lo como eu costumava fazer, mas não consegui. Então me abaixei para buscar sentir seu cheiro pela última vez, mas não havia mais cheiro. Não havia mais Lucas.
Observei por alguns segundos seu rosto. Apesar de tudo, tinha a expressão doce, serena, como se dormisse. Pensei: “Talvez em sua morte, não houve sofrimento”. Preferi pensar assim.
Sai dali e assinei alguns papéis, meio que automaticamente, pois não lembro de absolutamente nada. Também não lembro como cheguei em casa. Mas lembro do banho mais quente que tomei em minha vida. Chorei até cansar, e me perguntei que inferno de vida era essa, que num dia tenho tudo, e no outro, nada.
Enquanto eu tomava banho a campainha tocava e eu sabia quem era. Demorei um tempo, e quando saí, abri a porta. Não precisei dizer nada, ela não me pergunto nada.  Dona Teresa apenas me abraçou, como as mães  abraçam. Me ofereceu chá. Colo. E respeitou meu momento quando pedi que ela saísse e me deixasse só. E só então comecei a odiar a Gabi.
Por que diabos ela precisava sair, aquela hora? Por que estava com tanta pressa? Por que não me ligou? Por que não prendeu nosso filho naquela maldita cadeirinha que ela tanto encheu o saco para comprar?  O que tanto acontecia que ela não me contava?
Fora de mim, quebrei umas coisas em casa. Não sei bem ao certo o que fiz, e só percebi quando senti o sangue quente escorrendo de minha mão gelada, coberto por estilhaços do espelho da sala de jantar.
Chorei por muito tempo, e ali, eu já era bem diferente daquele outro Eduardo, o que não chorava. De alguma forma, não sei como, dormi. Como talvez assim, quando eu acordasse, nada fosse como é. O som estridente do toque do celular me fez levantar subitamente. Atendi, sujando o telefone com meu sangue. Era o hospital, avisando que a Gabriela havia acordado e já estava no quarto. E eu fui, possesso, encontrar aquela mulher.
Enquanto subia no elevador, me olhei no espelho e não reconheci quem vi. Acho que havia emagrecido uns quilos desde que  tudo começou a acontecer. Eu estava triste, mas o que havia em meu olhar era ódio. Ódio daquela mulher que dá e tira tudo de mim, como se brincasse com pirulito em boca de criança. Ódio ser quem eu sou, de ter a vida que tenho. Talvez fosse a hora dessa Gabriela ouvir umas verdades.
Quando entrei no quarto, ela estava lá, deitada, mas apoiada sobre vários travesseiros. O rosto ainda inchado e colorido por um roxo quase preto. Estávamos apenas eu e ela, e por um minuto tive medo de perder o controle e matá-la. Assim que me viu, começou a chorar. Eu não estava com um pingo de paciência.
- Você acha que chorar agora vai adiantar o que Gabriela? Que droga! Você sempre estraga tudo, e me faz conhecer o inferno sempre que eu acho que as coisas vão dar certo. O que você estava pensando? O que aconteceu de tão urgente assim, pra sair igual uma louca e matar o nosso filho? – fiz uma pausa, esperando uma resposta que não veio. Completei:
- Gabriela você tem noção do que você fez?
Ela balançava a cabeça negativamente, enquanto eu derramava sobre ela toda a frustração da minha vida.
- Gabriela, você sabe que você e o Lucas eram tudo pra mim. Você sabe que eu não tenho mais ninguém no mundo, e que o meu mundo era vocês. Pelo amor de Deus Gabriela, que merda. Você se negou a amamentar nosso filho, sumiu quando ele nasceu, e agora chegou a esse ponto? Que droga você esta querendo fazer com a minha vida, caramba!
Ela continuava calada.
- Fala alguma coisa, Gabriela! Vai dizer o que? Que surtou de novo, que tem depressão? Vai, já pode começar a se fazer de vítima.
Essa, que estou contando, é a versão limpa do diálogo. Na verdade acredito que tenha falado coisas mais ofensivas que estas, mas não me lembro bem. E mesmo que lembrasse, teria vergonha de escrever isso aqui.
Ainda chorando, ela tomou fôlego e disse, firme:
- Vai embora, Eduardo.
E eu fui.
Quando cruzei a porta do hospital, já estava arrependido de dizer o que disse. Quando cruzei a porta de casa, me dei conta de que, se foi acidente, ela é tão vítima quanto eu.
Nós, as pessoas ruins com as palavras somos assim: deixamos de falar o que sentimos, e quando falamos, sai torto, errado. As pessoas podres por dentro costumam enxergar apenas o próprio umbigo, e para o azar da Gabi, eu era tanto ruim com as palavras quanto podre por dentro. Me senti o pior lixo.
Talvez se eu fosse alguém bem resolvido, saberia separar a Gabi da tragédia. Saberia que esta tudo bem sentir raiva da situação, mas não dela. Enfim...Me julgue se quiser, mas todo mundo já falou algo do que se arrependeu. É o preço que pagamos por agir por impulso. Ainda assim, pode me chamar de merda, eu mereço.
O sofrimento dela como mãe não era menor que o meu. Tratei assim a mulher que eu amo, enquanto seu rosto ainda estava deformado por um acidente que levou a vida de nosso filho e quase a dela própria. Mais uma vez, podem me chamar de merda.
Por sorte, a dona Teresa me ajudou com tudo que precisava para o enterro do Lucas. O corpo levou certo tempo para ser liberado, por que era necessário que se fizesse a perícia para sei lá o que, não prestei atenção ao que os médicos legistas disseram.
Não houve velório, apenas uma breve despedida na capela do cemitério. Era o dia em que Lucas completaria 11 meses. Lembro apenas de sentir uma dor de cabeça forte, quase insuportável. Eu havia tomado alguns calmantes da Gabi, a fim de conseguir terminar este dia. Não quero contar detalhes, porque me dói, e já estou chorando. Meus amigos de trabalho estavam lá, e alguns amigos da Gabi também. Aliás, todos perguntavam por ela, o que deixava a minha situação ainda pior, já que eu fui um bosta com ela. A dona Teresa segurava a minha mão. E só. Me lembro de ver um dos funcionários entrando com um caixãozinho branco nas mãos, como se carregasse uma caixa qualquer. Silêncio ao menos por fora, por dentro eu queria gritar. Por um segundo me passou pela cabeça tirá-lo dali, e envolve-lo em meus braços pela última vez. Talvez soprar nele todo meu fôlego de vida para que eu fosse e ele ficasse. Uma colega da Gabi leu um poema que não ouvi, e depois disso, com meus próprios braços levei o corpo do meu filho para o local onde seria enterrado. Vendo-o descer dentro daquela caixa para dentro da terra escura e úmida. O frio cortando meu corpo. Lembrei-me de quantas vezes havia visto aquela cena em tão pouco tempo.
Muita gente me abraçou, me disse coisas que não me lembro mais. Fui pra casa enquanto a dona Teresa foi visitar a Gabi. Tomei meu banho quente, e lembrei do abraço da Gabi quando minha mãe se foi. Lembrei do quanto ele fazia falta. Do quanto eu precisava das palavras, ou apenas da voz dela ali. Sentei encostado na parede enquanto sentia a água derreter minha pele das costas. Não sei quanto tempo passei ali, mas quando levantei, me sentia pior do que quando entrei.
Estava entrando no quarto do Lucas, quando a dona Teresa me ligou.
- Quer alguma coisa, filho?
- Não, dona Teresa, obrigada. E a Gabi?
- Desculpa Edu, mas ela disse que não quer falar com você, nem que eu fale dela para você. Não sei o que você fez, mas ela esta bem chateada.
- Tudo bem dona Teresa. Obrigado por tudo.
Mais tarde, li o atestado de óbito, e descobri algo que não sabia. O Lucas não havia morrido no acidente. Ele estava morto antes disso.

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