4 O'Clock (parte 1)

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Sabia que podia ir aonde quisesse, na hora que quisesse. Podia fazer isso até sem se mexer, se tivesse vontade. Mas não importava o quanto perambulasse, sempre acabava na porta do mesmo hospital. Às vezes se pegava andando já no corredor que levava ao 133 e descia as escadas praguejando em voz baixa. Não podia continuar daquele jeito.

Agora estava encostado nas grades da ponte Gwangan, com a cabeça pendendo para trás e os braços estirados no metal gelado. Seus olhos estavam fechados e os cabelos prateados voavam para todos os lados, bem como o sobretudo e o cachecol que usava. Dessa vez era um de veludo cinza chumbo que deixava seus cabelos mais claros do que eram e realçavam o brilho cinzento dos olhos. O casaco que usava por baixo era de algodão rosa claro e seu cachecol bordado era branco e longo, chegando até o cós de seus jeans claros. A parte de trás do coturno batia distraidamente na grade enquanto o ceifeiro balançava o pé para frente e para trás.

Naquele horário a ponte estava vazia, exceto por um carro ou ônibus que passava de vez em quando. O mar corria escuro vários metros abaixo de Taehyung, o som da água batendo nos pilares que sustentavam a ponte se misturando ao som do vento forte. Aquela quietude barulhenta era um paradoxo que dava ao ceifeiro o que ele precisava para esvaziar a mente, ao menos por alguns segundos. Não queria pensar naquela conversa, não queria pensar no que precisava fazer. Também não queria pensar em ninguém, fosse RM ou...

Apertou a grade com força e abriu os olhos, tendo o céu negro de nuvens carregadas como a primeira coisa que viu. Sentia a umidade trazida pelo mar e pela chuva que estava prestes a cair em seus cílios e seu cabelo, mas não sentia frio ou ao menos não se importava o bastante com ele. Virou o rosto para ver a presença que o havia feito abrir os olhos e se deparou com uma garota de não mais que 15 anos andando lentamente na direção dele.

Sua aura emitia uma luz densa e opaca que deixava seu uniforme escolar com um aspecto velho e sua pele branca como jornal. Os cabelos escuros e sem brilho estavam presos em um rabo de cavalo. Não carregava mochila, mas o rosto jovem trazia uma expressão cansada, com olhos caídos e lábios entreabertos como se respirar fosse difícil. Mas ela não precisava respirar.

Taehyung estava levemente decepcionado, mas não estava surpreso. Ali era uma ponte, esperar que tivesse algum vagante era normal. Não era como a ponte Mapo de Seul, tumultuada de almas perturbadas, mas ainda era uma ponte. Suicidas dificilmente estavam bem resolvidos em suas vidas passadas. Alguns sequer lembravam por que se mataram ou não sabiam que estavam mortos, apenas andavam perdidos por aí sem ter um lugar para onde voltar. O ceifeiro pôs as mãos nos bolsos e endireitou-se, esperando.

Taehyung apertou os lábios preocupado quando a garota finalmente parou na sua frente e levantou os olhos para encará-lo. Bastava que alguém fizesse contato visual uma vez com o ceifeiro e ele teria acesso a sua mente, e a daquela alma vagante estava um caos.

- Não precisa ter medo. – O ceifeiro disse em voz alta. Aquela garota não sabia que estava morta, falar sem sua voz só a deixaria mais assustada e confusa. – Eu não vou machucar você. – Ela arregalou os olhos momentaneamente antes de cobrir a boca para impedir um soluço de choro.

- Você pode me ver! – Conseguiu dizer entre soluços, esfregando as mangas do uniforme no rosto para limpar as lágrimas. – Ando nessa ponte há dias e ninguém me vê, ninguém me ouve quando peço ajuda, é como se eu não existisse! – Era um lamento bem doloroso, mas Taehyung não esperaria menos que aquilo. Vagar não era cansativo apenas para ceifeiros, as almas vagantes também sofriam muito.

- Não se preocupe, não é nada disso. Vamos sair daqui, então explico tudo. Tudo bem? – Usou o tom mais calmo que conseguiu e estendeu a mão. A menina assentiu avidamente, fazendo seu rabo de cavalo balançar para cima e para baixo, e aceitou sua mão. Sua forma física não havia mudado, mas a garota o enxergava como uma pessoa diferente. Aos olhos dela, estava com essas mesmas roupas, porém num corpo feminino de mais ou menos 18 anos. Ele não podia mudar sua fisionomia para trabalhos “não programados” como aqueles, mas ainda era possível manipular o que os humanos viam e ouviam de acordo com o que lhes daria mais tranquilidade ou confiança. Se alguém de fora pudesse vê-los, veria um garoto de olhos cinzentos muito brilhantes e uma garota andando de mãos dadas.

Conversaram durante todo o longo caminho de volta a Busan, Taehyung sempre se esforçando para ser o mais claro possível sem ser direto demais. A garota parecia mais calma, mas ainda chorava, então despejar a verdade toda de uma vez talvez não fosse seguro. No fim da ponte, depois de ter explicado tudo para e menina, ela se virou para olhá-la uma última vez, com a expressão de quem se perguntava por que havia feito aquilo.

- Você pode não lembrar o motivo exato, - começou ele, calmamente, acompanhando seu olhar. – mas o fato é que você estava sofrendo naquela vida. Não precisa ter que sofrer na morte também.

- Eu tive uma namorada. – Confessou a menina subitamente, enquanto sua luz deixava de ser opaca aos poucos e adquiria um brilho leve. Sem o desgaste de vagar, seu uniforme era um branco intenso com a saia plissada azul que balançava ao vento. Sua pele era levemente bronzeada e seu cabelo era uma cascata negra e brilhante. – Alguém da escola descobriu e saiu espalhando. Eu tinha que me esconder e fugir nos intervalos e na saída das aulas, ela também. Ela não aguentou o bullying, começou a me evitar e depois mudou de escola. Acho que não aguentei também. – Ela deu um sorriso triste e limpou o rosto novamente. Taehyung apertou os lábios e olhou para os próprios pés, incerto do que dizer. Ele sabia daquilo tudo. – Acha que vou vê-la de novo?

Aquela pergunta fez ecoar na mente do ceifeiro as palavras que ouvira poucos dias atrás e seu coração disparou. Não podia pensar nisso logo agora. Suspirou audivelmente, olhou para a menina com um sorriso de desculpas e deu de ombros.

- Não sei. – Admitiu. – Pode ser que se encontrem no que vier depois daqui. Mas você precisa Atravessar para saber, não é? – Argumentou, arqueando uma sobrancelha e dando um sorriso torto. A menina riu brevemente, mais tranquila.

- Acho que sim. – Concordou ela. Estava com as mãos para trás e balançava levemente sobre os pés, como se constrangida por ter chorado tanto havia poucos minutos. Não havia mais nada daquele aspecto triste e doentio de uma alma vagante. Era uma alma jovem, cheia de energia. Positiva, ele sentiu. Seu coração pesou.

A vida dela não era para ter sido interrompida daquele jeito, soube no momento em que pegou sua mão. Viu desde seu primeiro suspiro até seu primeiro beijo, viu o que viria muito além daquilo: formatura, emprego, viagens, uma família nova. Sua morte seria tranquila e sua Travessia também, muitas décadas depois. Não deveria ser tão precoce e tão errada daquele jeito. Taehyung sabia que não era nem um pouco aconselhável se importar com o rumo que o universo tomava nesses casos, mas não conseguia engolir aquilo. O sorriso que deu em resposta àquela menina era carregado de uma melancolia que ela talvez fosse jovem demais para perceber e entender.

- Então, - começou ele. – tem algum lugar que você queira visitar antes de ir? – Ofereceu, como era o costume nessa etapa. A moça pensou um pouco e deu um sorriso tímido antes de responder.

- Baskin-Robbins... – Admitiu, corando levemente e brincando com a ponta do rabo de cavalo. – Eu sempre quis levar a Jihyo lá, mas ela não gosta muito de doces. Os doces são meio caros, mas são muito bons. – Taehyung riu da timidez súbita da menina e estendeu a mão novamente.

- Baskin-Robbins, então. – Concordou. Quando deram as mãos, a ida ao local foi instantânea. Não precisava mais esconder o que podia fazer, ela já sabia o que ele era, mas ainda assim ficou impressionada. Seus olhos brilharam e ela riu animada, praticamente pulando, tudo em sua postura indicando a criança que ela ainda era. Mesmo vazio, o local tinha uma atmosfera animada e refrescante por conta das luminárias curvas e todas as cores claras e alegres.

Ela sentou num banco alto de estofado rosa perto do balcão azul claro e Taehyung assumiu papel de “atendente” detrás dele. Preparou um sorvete com granulados multicoloridos e ofereceu à moça. Quando ela pegou o copinho de isopor rosa com branco, dirigiu ao ceifeiro um olhar de compreensão que foi devolvido com um de encorajamento vindo dele. Estavam na última etapa da Travessia e ambos sentiam isso.

- É diferente da lenda. – Comentou ela, remexendo no sorvete com uma colher de plástico azul. Seus olhos estavam marejados, mas ela sorria. – Não é uma sala de chá elegante nem nada disso. – Ambos riram do comentário e então, respirando fundo uma última vez, a moça tomou o sorvete. Taehyung esperou pacientemente até que ela acabasse. Ao terminar, ela empurrou o copinho vazio e a colher para o ceifeiro e limpou os olhos com a manga do uniforme mais uma vez. – Acho que tenho que ir agora, não é? - Taehyung assentiu e indicou a porta de vidro com adesivos chamativos da sorveteria.

- Sua próxima chance está depois daquela porta. Viva corretamente a partir dali. – Falou, mas sem verbalizar. A menina ouviu mesmo assim e já não estava mais assustada, já não chorava. Desceu do banco, ajeitou a saia e andou até a porta, determinada. Pegou na maçaneta logo abaixo de um adesivo indicando “puxe” e olhou para trás uma última vez com um sorriso singelo. Agradeceu sem verbalizar e abriu a porta. Todo o ambiente foi tomado de luz e se apagou quando ela enfim Atravessou. Ela não se lembraria de nada daquilo para onde quer que fosse depois.

Taehyung se viu sozinho no local que para aquela alma foi uma sorveteria. Sem ela ali, restava apenas uma sala completamente branca, sem móveis ou janelas, e com uma única porta, aquela por onde houve a Travessia. Não era seu momento de passar por ela, então apenas fechou os olhos e foi para outro lugar sem se importar muito em escolher.

Sabia onde estava antes mesmo de abrir os olhos. O metal frio batendo em suas costas, os zumbidos e apitos familiares de máquinas hospitalares, o farfalhar da cortina balançando com o vento que entrava pela fresta da janela e, abaixo de tudo isso, o suave ressonar da pessoa que dormia naquele quarto. Abriu os olhos.

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