As luzes da rua clareavam minimamente o quarto bagunçado e refletiam na pele clara do garoto deitado e desperto na cama. Seus cabelos negros brilhavam sob a luz noturna e lhe davam um aspecto quase angelical, a expressão pensativa tornando seus traços mais maduros do que os 22 anos que tinha. Um incenso queimava num apoio de cerâmica ornamentada no criado mudo ao lado da cama, junto de um pequeno acervo de amuletos que seus amigos jamais entenderiam o propósito deles.
Jimin olhava para o teto sem realmente vê-lo com uma das mãos sob a cabeça e outra deslizando distraidamente pela lateral do corpo de Jungkook, que ressonava com a cabeça em seu peito e os braços à sua volta. A noite úmida e quente que indicava o fim da primavera era marcada por um céu limpo com a lua bem no alto. Já passava das duas da manhã, porém mais uma vez o rapaz não conseguia dormir. Naquele quarto frio pelo ar-condicionado e nos braços do namorado era onde devia estar mais confortável, mas algo em sua mente se recusava a deixá-lo tranquilo.
Pegou o celular que estava perto da cama junto dos fones de ouvido, dando play naquela faixa de áudio que não cansava de repetir desde que a descobrira. Era a voz de Jungkook na gravação, mas não a ouvia tanto por causa dele. Depois de alguns segundos de áudio, outra voz que Jimin conhecia muito bem se juntava à de seu namorado e foi quando Jungkook disse que não havia mais ninguém no quarto no dia que gravara aquilo que Jimin teve as confirmações que suspeitava.
Estava convencido de que estava delirando de remédios no primeiro evento estranho que lhe ocorreu, mas começou a ser tão frequente que não era possível ser isso toda vez. Na sala de recuperação após o transplante, um garoto com roupa de motoqueiro que ele nunca vira antes sorriu para ele e o agradeceu por “dar um propósito para o que houve” e simplesmente desapareceu logo depois. Outros eventos parecidos foram acontecendo enquanto estava no hospital: pessoas que falavam com ele e que ninguém mais conseguia ver e uma constante sensação estranha nos olhos toda vez que uma pessoa dessas aparecia.
Pensou que sua vida dali para frente seria um pesadelo eterno e achava que enlouqueceria durante o mês que teve que ficar no hospital em observação, mas um médico de lá o “resgatara” disso tudo. Era dele que conseguia os amuletos e todos os truques para diferenciar e despistar os espíritos com quem não queria lidar, desde então tudo ficara mais calmo. Já fazia quase 3 meses e a única pessoa que ele queria realmente ver ainda não havia dado as caras.
“Não tem como você ser só um sonho”, pensou Jimin, quase como uma prece, para ninguém em específico. Passou os dedos sobre a cicatriz recente de seu transplante sem se dar conta disso e fechou os olhos para tentar dormir, com a música ainda tocando nos ouvidos.
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- Esse dorama é triste assim? – Jungkook murmurou para si mesmo, confuso, enquanto alternava o olhar entre a tela da TV e o rosto molhado de lágrimas de Jimin. Ele fungava um pouco e bebia um suco de caixinha num canudo, de vez em quando pegando uma mão de sua pipoca sem sal. Jungkook observava a cena de guerra que passava no dorama sem entender muito bem por quê aquilo pareceria tão triste.
- Eles são tão jovens – Choramingou Jimin, com a boca cheia de pipoca. – Olha esse Taehyung, ele não parece ter mais que 17, por que ele tem que passar por tudo isso? Nesse ritmo ele não vai poder voltar pro príncipe Xiumin, eles nunca vão ficar juntos por causa dessa guerra idiota! – Ele resmungava sem parar enquanto esfregava os olhos para limpar as lágrimas que não paravam. Seu namorado apenas dava tapinhas em suas costas, sem muita certeza do que fazer.
- Hyung, o nome do guerreiro é Daehyun – Jungkook corrigiu delicadamente, ao mesmo tempo que se perguntava quem raios era Taehyung.
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- Jiminie, você vem com a gente? – Hoseok perguntou, colocando a mochila nas costas após amarrar os tênis. Os cabelos laranja recém lavados ainda pingavam um pouco na franja e deixavam gotas marcadas em sua camisa fina de algodão branca. A calça moletom era folgada e preta, contrastante com os tênis Nike laranja chamativos. Em sua cintura estava amarrada uma jaqueta leve vermelha que ele havia surrupiado do guarda roupa de Yoongi alguns dias antes. – Hoje não vai ter a turma da noite, então Yoongi-hyung chamou pra aquele bar perto da casa dele.
- Não, ainda não me acostumei direito com álcool de novo e me exercitei demais hoje – Jimin recusou com um gesto, enquanto sua mão livre esfregava uma toalha fofa em seu cabelo, agora sem a tonalidade preta que o destacava antes: as mechas foram platinadas até atingirem uma coloração prateada. – Acho que só vou pra casa mesmo, ainda tem muita coisa pra arrumar por causa da mudança.
- Ainda nem acredito que você realmente deixou Busan – Hoseok riu, animado. – Não achei que você fosse capaz de deixar o Kookie pra trás assim.
- Ei, não fale como se a gente tivesse terminado, hyung! – Jimin corou e jogou a toalha que estava usando antes em Hoseok. – Foi uma conversa bem longa e está tudo bem agora, ok? Não vai demorar pra ele se formar de todo jeito, isso tudo é provisório...
- Eu sei, eu sei, relaxa. – O garoto mais velho riu e jogou a toalha de volta, já andando até a porta de vidro que dava para a saída da sala de dança em que estavam. – Até amanhã, então. Avisa quando chegar em casa, ok? E vê se não adoece nesse calor, o verão não tá perdoando ninguém. – Jimin assentiu com um sorriso e então foi deixado sozinho por Hoseok.
Bom, sozinho não.
- Você não precisa se esconder, sabe. – Disse Jimin, um tanto alto, para a presença que sentia enquanto arrumava suas coisas na mochila. Puxou de lá uma maçã e um amuleto enquanto a presença ficava cada vez mais nítida, até se materializar por completo num canto da sala.
O uniforme escolar, os cabelos lisos e muito pretos, o rosto arredondado de seus 16 anos e os óculos grandes tornavam o garoto uma imagem comum do cenário, mas o fato de seu reflexo nos enormes espelhos da sala ser quase translúcido deixava bem claro que havia algo errado. Jimin sorriu para o jovem vagante que o encarava com receio e curiosidade, gesticulando pra que ele se aproximasse.
- Qual é o seu nome? – Perguntou para o vagante, quando ele timidamente sentou de pernas cruzadas ao seu lado.
- Yoon... Seonho... – Sua voz soou um tanto fraca e ele se encolheu, envergonhado.
- Oh céus, tadinho. Há quanto tempo está vagando por aí sem comer nada? Ninguém veio te buscar ainda? – Jimin soava como um irmão preocupado enquanto desenhava um símbolo na maçã com o amuleto e depois apressava-se a entregar o alimento para o garoto.
- Os hyungs disseram que não era pra confiar nos de olhos cinzentos – Explicou Seonho, com o olhar baixo, antes de arriscar dar uma mordida na maçã.
- Aigoo, de qual RPG você tirou isso? Os “olhos cinzentos” que você diz são só uns caras que fazem a gentileza de te guiar pra onde você deve ir. – Jimin esclareceu, rindo divertido. Seonho o olhou num misto de confusão e surpresa, sem entender bem o que aquilo queria dizer. Jimin então prontificou-se a explicar do jeito mais simples possível como os ceifeiros funcionavam e por que não era pra evitá-los e tudo mais.
- Eles “incomodam” diferente – O jovem vagante disse, terminando sua maçã. Quando Jimin o olhou sem entender, ele pôs a mão no próprio peito antes de continuar. – Desde que eu morri, sinto um “incômodo” aqui quando eles chegam perto. Sinto isso com outros espíritos também, mas com eles é diferente.
- Ah, você diz a presença deles – O mais velho finalmente compreendeu. – Esse “incômodo” é normal, não precisa se esconder toda vez que sentir, ok? É ele que vai te ajudar a identificar seu Guia, assim você não se mete com algum vagante encrenqueiro.
- Oh, então é isso... – Seonho coçou a nuca e olhou para cima, assentindo pensativo. – Mas espera, isso é estranho. Você está vivo, não é, Hyung?
- Sim, sim. Por quê, não pareço? – Jimin riu, mas estava intrigado.
- Então por que sua presença é igual à do hyung de cabelo azul que veio me procurar ontem?
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O vento frio que marcava o meio do outono fazia seu cachecol rosa bebê chicotear para trás e batia no violão que levava nas costas enquanto ele pedalava pela ciclovia vazia. O céu do amanhecer mesclava de azul, roxo e rosa ao longo das nuvens e dava uma coloração única às suas madeixas prateadas parcialmente cobertas por um gorro preto de lã. Seu casaco de veludo era cinza e destacava-se sobre as calças pretas justas e a camisa grossa branca. Os tênis Adidas róseos como o cachecol apoiavam-se nos pedais enquanto Jimin guiava a bicicleta amarela sem pressa em direção ao parque.
O céu já estava um pouco mais claro quando Jimin chegou ao local aberto e vazio. O frio não era convidativo para a prática de exercícios matinais, então estava completamente sozinho naquele horário. Bom, fora lá justamente por causa disso, então seu sorriso calmo foi inevitável enquanto ele contemplava o vasto gramado rodeado de árvores.
Pegou uma tranca para sua bicicleta e a prendeu num local reservado a elas, para logo depois pegar a bolsa que estivera balançando na cesta de palha da bike durante todo aquele tempo. Ajustou melhor a bolsa do violão e pôs-se a descer pelo caminho de pedra que levava até as árvores. Ele sabia que além delas havia uma trilha que dava num templo, e seu objetivo era aquele. Ninguém ou poucas pessoas sabiam da existência desse templo e fora assim desde sempre, mas Jimin o conhecia e andaria até ele de olhos fechados.
Afinal, a trilha era criação sua.
Andou por um bosque denso pelos primeiros 20 minutos até ter adentrado o bastante para surgirem as primeiras clareiras e áreas mais abertas. Passou por algumas delas e seguiu riacho abaixo quando chegou nele, andando por mais 15 minutos. Felizmente estava frio o bastante para que não tivesse suado e já estava em sua antiga forma atlética havia algum tempo, então não estava muito cansado também. Não demorou muito mais para chegar às vasta clareira que abrigava o majestoso e antigo templo que Jimin procurava. Ele não pôde deixar de soltar um “wah” surpreso ao ver a edificação de madeira diante de si.
O sol fizera sua aparição por completo e iluminava as pinturas descascando e as plantas trepadeiras que se espalhavam pelos pilares e pela escada que levava à sua porta principal, que fora derrubada havia muito tempo. A nostalgia atingiu Jimin com tudo enquanto ele subia as escadas deslizando os dedos pelo corrimão cheio de musgo, flores e tinta antiga. Os degraus rangiam sob seus pés, mas estavam no lugar. Afastou as plantas que caíam quase como uma porta natural sobre a entrada e andou com cautela pelo interior do templo. Jimin jamais pensaria que um lugar trouxesse tantas lembranças tão lindas de uma só vez, mas ali estava.
A madeira velha e o chão lotado de folhas secas não se destacaria muito para ninguém, mas sob o olhar de Jimin, era lugar mais lindo do mundo. Era exclusivamente seu e de Taehyung. Aquelas paredes de madeira e o chão duro eram as maiores testemunhas do amor dos dois: o protegeram da chuva, da neve, do sol, do mundo inteiro. Nenhum julgamento passava por aquelas paredes e nenhuma regra de fora se aplicava ali. Jimin podia ser apenas Park Jimin e Taehyung podia ser apenas Kim Taehyung. Eram simplesmente dois homens que se amavam e ninguém os impedia disso naquele lugar. O fato de estar de pé depois de tanto tempo e o fato de que a vegetação nele havia sobrevivido ao outono intenso só reforçava o sentimento que Jimin tinha de que ali era mágico.
Saiu do templo e sentou-se na varanda de pernas cruzadas, colocando a bolsa do violão e a menor ao seu lado. Apenas contemplou as árvores e a natureza entre elas acordando por um momento antes de puxar para fora o conteúdo da bolsa menor. Havia um porta incenso, um isqueiro, uma garrafa de soju com dois pequenos copos de dose e uma marmita que se esforçara para cozinhar na noite anterior. Arrumou tudo como num pequeno altar e analisou satisfeito seu trabalho antes de acender os incensos.
- Taehyung-ssi... Não. Taehyung-ah – Jimin começou, num tom suave, enquanto puxava o violão da bolsa e o repousava em seu colo. – sei que não pode me ouvir, mas espero que possa sentir em algum lugar no seu coração que eu ainda lembro de tudo. – Ele suspirou e testou as cordas do violão antes de prosseguir. – Me perdoe por não ter lutado mais por nós dois nessa vida. Hoje faz um ano desde a última vez que te vi e... Estou com saudade. – Já sentia sua voz embargando pelas lágrimas que tentavam se formar. Pigarreou e posicionou seus dedos no braço do instrumento para começar a tocar. – Só quero que saiba que você me fez mais forte e mais feliz por ter voltado. Obrigado por me encontrar, Taehyung-ah. Onde quer que esteja agora... Só espero chegar até você com essa música. Música ainda é algo nosso, de todo jeito.
Com um sorriso de canto, fechou os olhos e se pôs a tocar. Vinha estudando composição havia um bom tempo com Yoongi e aquela era sua primeira música feita sozinho. Tocou e cantou como nunca em todas as suas vidas, seu corpo manifestando seu espírito tão abertamente que até mesmo os pássaros estariam invadindo se o interrompessem. Dedilhava e batucava as notas na guitarra acústica com uma paixão que nunca dedicou a nenhuma outra interpretação antes. Tinha que dar tudo de si, ou não faria jus àquela letra, não estaria respeitando os próprios sentimentos. Tantos sentimentos.
- Let me love, let me love you... – Entoou finalmente as últimas linhas da música, dedilhando o fim dela com precisão. Permaneceu com as mãos no instrumento e os olhos fechados enquanto as lágrimas desciam livres por seu rosto. Não pôde contê-las afinal de contas, mas não estava constrangido por elas. Apenas sentia-se preenchido por uma incrível sensação de alívio. Alívio... E algo mais.
Algo familiar. Familiar como a própria sombra e seus próprios batimentos cardíacos. Algo seu.
O sorriso que já estava lá alargou-se, ainda que mantivesse seus olhos fechados. “Obrigado por me encontrar”, repetiu para si mesmo, enxugando o rosto e abrindo os olhos para obter sua confirmação.
- Oi de novo, - Jimin riu, feliz. – Taehyung-ah.
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Singularity
FanfictionNão havia o que questionar sobre o que fazia, alguém precisava fazer. Não havia o que reclamar, nem o que aproveitar também. O equilíbrio do mundo precisava ser mantido, tudo que nasce um dia tem que morrer e o trabalho de V era guiar as almas pelo...