Scenery

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Estar preso entre dois mundos era, sem dúvida, o fardo mais pesado que aprendera a carregar quando se tornou um ceifeiro. Podia observar e habitar o mundo humano, mas jamais teria um lar nele ou participaria da forma que fosse. Aquilo que vinha Depois não lhe dizia respeito, pois nunca inteiramente deixara sua ligação com o mundo de Antes. Podia até ter sido escolha sua se tornar o que era, mas deixar esse caminho não dependia dele. Até o dia de sua Travessia, só podia vagar no limbo sendo invisível aos vivos e temido pelos mortos.

Mas naquele dia, incrivelmente, V considerou isso uma vantagem.

Depois de ser deixado por RM, ouviu a fita que recebera e mais várias outras que achou quando vasculhou a caixa que o ceifeiro mais velho havia mexido antes . Sentou-se no chão ao lado da mesa e ficou ali por horas, até pouco antes de a loja abrir. Quando se deslocou para não ser “apanhado”, ainda estava com o toca-fitas e pelo menos mais três demos que Jimin gravara com o garoto dono dos cadernos, Yoongi, e seus outros amigos.

Agora estava sentado na recepção do hospital de Jimin, sentindo-se levemente envergonhado por ter furtado as fitas e mais ainda por ter ido parar naquele lugar sem pensar - mais uma vez. Por sorte não acabara direto no 133. A música da primeira fita tocava alta nos fones de ouvido e ele observava o movimento distraído e atento ao mesmo tempo. Queria ter certeza sobre a situação de Jimin, mas não sabia bem como faria isso, já que obviamente não podia ir em seu quarto.

Taehyung levantava e sentava ao longo do tempo, inquieto, rondando de um lado para o outro sem decidir o que fazer. Sua decisão chegou poucos minutos depois quando ele sentiu a presença agitada de Jungkook por perto. Olhou em volta rapidamente, procurando, até que o encontrou adentrando o hospital apressado.

Tudo em seu aspecto era diferente do dia anterior. Os jeans claros rasgados no joelho se ajustavam em suas pernas ágeis enquanto ele subia as escadas sem dificuldade, cada passo forte ecoando nos degraus por conta das botas marrons pesadas. A camisa branca sob o casaco preto balançava com seu ritmo e o boné preto impedia que seu cabelo acompanhasse o movimento. Ter usado as escadas indicava o quanto estava apressado, mas a estranha serenidade nos passos demonstravam bem que não era uma pressa desesperada.

As roupas estavam bem mais simples, mas sua aura brilhava de um jeito que o deixava bem melhor apresentado do que da última vez que Taehyung o vira. O sorriso mal era contido, seus olhos grandes não traziam mais nada daquele medo pesado de antes, as bochechas estavam coradas. Ele estava feliz. V percebia claramente qual era a situação àquela altura, mas seguiu Jungkook mesmo assim. 

Naquele corredor familiar demais, V desacelerou o passo em sua “perseguição”. Não entraria no quarto por razões óbvias – a última coisa que precisava era fazer Jimin parecer um lunático cumprimentando o nada na frente da própria família. Parou ao lado da porta entreaberta e tirou os fones, deixando-os descansando em seu pescoço. Pôs as mãos nos bolsos e apenas ficou lá, ouvindo.

O quarto estava numa animação chamativa e acolhedora que combinava totalmente com Jimin e isso durou por horas a fio. Viu amigos e familiares deixando presentes, parabenizando e desejando uma boa cirurgia, mas nenhum deles ficava por muito tempo. Até mesmo os pais e o irmão de Jimin saíram depois de um certo tempo, mas a constante era sempre a mesma: Jungkook. Taehyung o viu apenas entrar e aquele garoto não saiu por nada.

Yoongi chegou com um garoto que V presumiu que fosse Hoseok. Sentiu-se culpado mais uma vez por ter furtado as fitas e instintivamente as segurou nos bolsos, como se de algum modo seu dono pudesse saber que elas estavam ali. O sentimento intensificou quando percebeu que acabou encarando demais Hoseok e agradeceu mentalmente por não poder ser visto. Aquele sorriso e aquela aura... Eram tão semelhantes aos de Jimin que fizeram o coração de V disparar e suas bochechas arderem.

Ponderou voltar a ouvir as fitas para se livrar desses pensamentos culpados e até pegou os fones para colocá-los nas orelhas de volta, mas hesitou quando Yoongi saiu do quarto com Hoseok logo atrás depois de um tempo. O garoto tinha um sorriso travesso no rosto que fez seu – V acabara de notar – namorado questionar o motivo dele.

- Estou fazendo um favor àqueles dois, você vai ver – Foi a resposta dele. Isso claramente despertou a curiosidade do rapaz de cabelos laranja e ele muito animadamente começou a bombardear seu parceiro de perguntas enquanto andavam juntos até o elevador. Mais uma vez ele se pareceu com Jimin e V ficou desconcertado, mas havia algo intrigante demais naquela situação para que ele se incomodasse com isso.

Deixou os fones onde estavam e se aproximou mais da porta com o cenho franzido, atento ao que se passava no quarto. Jungkook soava nervoso quando falava e Jimin estava usando seu tom mais acolhedor que Taehyung identificaria a quilômetros. Houve um momento um tanto longo de silêncio que fez V olhar discretamente para dentro do recinto. Jimin ouvia tranquilamente uma música enquanto Jungkook o observava cheio de expectativa.

Quando Jimin abriu os olhos, voltou-se imediatamente para o amigo, ficando de costas para a porta, então V se aproveitou disso para continuar observando os dois. Jungkook parecia ainda mais nervoso e tudo que ele pronunciou depois de tomar fôlego veio carregado de uma torrente tão intensa de sentimentos que deixou Taehyung perplexo. Ele não conseguia tirar os olhos daquela cena, ao mesmo tempo que queria se deslocar dali para qualquer outro lugar o mais rápido possível.

Quando Jungkook tomou as mãos de Jimin, V sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Sua respiração acelerava à medida que as coisas evoluíam entre os dois garotos. Tudo gritava para que ele simplesmente saísse dali, mas de alguma forma permaneceu congelado no lugar. Sentiu suas pernas cederem e deslizou pela parede ao lado da porta até cair sentado no chão quando se deu conta de que vira bem mais do que podia suportar.

“Você sabia que isso aconteceria”, pensou Taehyung para si mesmo, com os dentes e os punhos cerrados, olhos fechados com força e batimentos a mil. “Você não tem o direito de se sentir assim”. Passou as duas mãos pelos cabelos e apoiou os cotovelos nos joelhos com um suspiro exausto.

Puxou dos bolsos as cassetes e o toca-fitas, tirou os fones do pescoço e os observou em suas mãos por um longo momento até que eles sumiram – acabara de mandá-los de volta para onde pertenciam. Não eram seus, não tinha direito nenhum sobre eles, do mesmo modo que não tinha sobre nenhum assunto dos vivos.

Não tenho e nunca terei”, concluiu amargamente.

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