Stigma

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A maré alta da manhã batia nas rochas logo abaixo de onde estavam e respingava água salgada para todos os lados. As duas figuras sentadas no topo de uma rocha mais elevada não se sentiam muito afetadas pela baixa temperatura ou pelo vento cortante que soprava. Entre eles havia duas garrafas de soju, uma fechada e a outra com o conteúdo pela metade.

- Incrível que ainda exista alguém que faz essas oferendas para os espíritos do mar. – Comentou RM, casualmente. Estava sentado balançando os pés na borda da rocha e transmitia um ar jovem e relaxado, observando o mar com os braços apoiando o resto do peso do corpo. Taehyung, por outro lado, estava sentado de pernas cruzadas e apoiava os cotovelos nos joelhos com uma expressão cansada e o rosto levemente corado pelo álcool que consumira. – É fácil conseguir mais se quiser, mas eu não aconselharia ir muito rápido.

- Estou bem. – Foi tudo o que respondeu. Colocou o cabelo quase seco para trás para que não batesse nos olhos por conta do vento e pegou a garrafa de soju. Bebeu um gole um tanto longo e ficou com a garrafa em mãos, brincando com ela sem muito interesse. – Me trouxe aqui só pra me embebedar? – O ceifeiro soou um tanto irônico ao dizer aquilo.

- Você estava dando muito chilique, tinha que te dar alguma coisa pra uma conversa ser possível aqui. – A resposta de RM fez Taehyung lhe lançar um olhar ofendido, algo que fez o mais velho rir. – Não estou julgando. Só preciso saber que você está calmo o bastante para me escutar. Há 10 minutos eu achei que ia apanhar.

Não é como se você não merecesse uns socos”, pensou Taehyung, dando mais um gole da bebida. Quase se engasgou com o tapa não muito gentil que levou no topo da cabeça. Lançou um olhar questionador para RM e então se lembrou.

- Eu posso te ouvir, seu punk. – RM disse, ameaçando outro tapa e fazendo V se encolher instintivamente.

- Também posso te ouvir, mas você não está falando muito. – Retrucou o ceifeiro mais novo, arqueando uma sobrancelha. – Por que não parece nem um pouco surpreso com tudo isso?

- Achei que a essa altura dava pra presumir. – RM se espreguiçou e abriu a outra garrafa de soju. Tomou um gole e voltou-se para Taehyung, como se avaliando-o antes de começar a falar. – Já aconteceu de você ter que Guiar duas almas ao mesmo tempo, não é?

- Hm... Duas ou três vezes? – V inclinou um pouco a cabeça e estreitou os olhos, tentando lembrar. – Não passou disso, eu acho. É bem raro.

- Exato. Quase nunca acontece. O nível de envolvimento entre essas duas pessoas tem que ser especialmente forte. As vidas se entrelaçam com tanta intensidade que permanecem assim até o momento da morte, alguns casos até depois dela. – RM voltou a observar o mar com um sorriso melancólico e suspirou antes de continuar. – Você e aquele humano foram algo parecido com isso, mas confesso que me surpreenderam. Até hoje vocês não param de me pegar de surpresa.

- Acho que não consigo imaginar isso. – Murmurou Taehyung, olhando desapontado para a garrafa vazia que segurava. A decepção foi substituída por incredulidade quando a garrafa se encheu sozinha aparentemente do nada. Olhou de RM para a garrafa e achou melhor não perguntar, o ceifeiro mais velho parecia muito distante dali.

- Eu posso te contar tudo, mas também posso mostrar. – Sugeriu RM, estendendo a mão com uma expressão muito entretida, como se a possibilidade o divertisse.

- Ainda não bebi o bastante pra ficar de mãos dadas com você. – Taehyung disse, claramente recusando, e bebeu mais, evitando olhar para o mais velho.

- Ok, escolha sua. – O ceifeiro riu e também bebeu. Ficou brincando com a garrafa jogando-a de uma mão para a outra no colo, os anéis tilintando no vidro tornavam aquele som quase musical. – Foi durante a dinastia Joseon, pelo século XVIII. Naquela época a guerra estava com tudo, as pessoas desse país basicamente existiam em função dela. Foi uma das épocas mais tumultuadas pra mim e os Outros daqui. As crianças que nasciam naquela época já tinham todo um futuro planejado em função da guerra também, todos os meninos começavam a ser treinados bem cedo. Você e Jimin estavam no meio.

“O treinamento de vocês começou quando ambos tinham 7 anos, foi lá que se conheceram. Eram os melhores daquela turma e simplesmente não se desgrudavam, era incrível. Suas famílias eram distintas em todos os aspectos possíveis. Jimin era filho do general do Rei e vivia no palácio, enquanto você vinha de uma família de guerreiros simples e fazia parte do vilarejo como todos os outros. O treinamento podia ser no mesmo lugar e sob o mesmo propósito, mas o futuro de vocês era claramente distinto. Ainda assim, o que vocês tinham... era único.”

Taehyung apertou um pouco a garrafa que segurava no colo. Sentia que precisava beber mais para conseguir lidar com aquela história, mas não queria perder nada dela, então tinha que ficar um tanto sóbrio até o fim. Colocou a garrafa de lado e apoiou os cotovelos nos joelhos, cobrindo os olhos com as mãos. RM esperou um pouco antes de continuar, avaliando o outro ceifeiro.

- Você está bem? – Perguntou, cutucando de leve o topo da cabeça de Taehyung.

- Sim, sim. – Ele respondeu rapidamente, bagunçando o próprio cabelo com uma das mãos. Voltou a se apoiar nos joelhos e permaneceu fitando o chão. – Continue, por favor.

- Avisa se for surtar. – RM disse, brincando apenas em parte. – Como eu disse, vocês cresceram juntos e eram mais próximos do que qualquer pessoa ali, sem dúvida nenhuma. Os dois eram os queridinhos do vilarejo, mas como não podiam ser? Já consideravam vocês a esperança naqueles tempos de guerra: jovens, fortes e sempre sorrindo. Sempre fazendo os outros rirem também. Foi desse jeito “perfeito” até os 22 anos de vocês.

- Mas? – Interrompeu V. Soltou um forte suspiro e olhou para RM. – Tem um “mas” aí, tenho certeza. – Disse, usando as mesmas palavras de Jimin sem nem mesmo perceber.

- Tem sim. – Concordou o ceifeiro. Parou de brincar com a garrafa e deu mais um gole. – Todo mundo sabia da amizade de vocês. O que ninguém sabia era que ia bem mais longe do que isso.

- Ah, caralho – Taehyung soltou, antes que pudesse se deter, levantando-se num salto e por pouco não derrubando o soju.

- Tem certeza que não quer que eu mostre? – Perguntou mais uma vez, enquanto observava Taehyung andando de um lado para o outro praguejando baixo com um misto de solidariedade e divertimento. – Seria bem mais rápido, e também...

- Continue. – Interrompeu o mais novo, sentando-se de novo ao lado de RM tão subitamente quanto havia se levantado. Bebeu um gole longo do soju e esperou.

- Era o auge da glória de vocês. Batalhas vencidas, linhas de frente bem protegidas, exércitos bem liderados... Jimin trazia uma energia para todos que o tornava um líder mesmo se ele não quisesse, e todos sabiam que sem o melhor amigo ele não seria o mesmo, então o respeito também chegava pra você. – Continuou, sem hesitar, decidindo que seria melhor soltar tudo de uma vez. – Isso atraiu o interesse de reinos vizinhos, abria portas pra alianças. Que aliança melhor estabelecida do que por um casamento?

“Foi quando começou a complicar. Jimin era o candidato perfeito pra qualquer princesa, ele basicamente precisava só escolher. Estava tudo acertado, exceto o principal nisso tudo... Jimin. Ele concretizou seu primeiro ato de rebeldia dizendo que não ia casar com alguém que não amava e sequer conhecia. Fez um discurso muito inspirador sobre a confiança que ele depositou no reino e que ser desrespeitado daquele jeito pelo lugar que lutou pra proteger era traição. Claro que foi bem bonito, mas ainda assim foi uma rebeldia.”

“Ele foi suspenso das atividades por um tempo e obviamente você não quis sair do lado dele, não com o risco de nunca mais vê-lo estando tão alto. Enquanto se discutia o que seria feito sobre Jimin, vocês fugiam e se encontravam praticamente todas as noites. O medo que ele tinha de ser obrigado a se casar e perder você pra sempre o deixou um tanto descuidado... Nisso alguém descobriu. Os tempos são difíceis pra dois garotos apaixonados até hoje, então dá pra imaginar como foi naquela época.”

RM pausou apenas para beber mais e checar mais uma vez se Taehyung estava bem o bastante para continuar ouvindo. O ceifeiro mais novo estava com a respiração mais acelerada do que o normal e seu maxilar estava tenso. Os olhos fitavam um ponto distante no mar e as mãos não paravam quietas na garrafa mais uma vez vazia de soju. Torceu para que a garrafa se enchesse novamente só depois de terminar a história, então continuou.

- O caos foi quase instantâneo. Quando expuseram vocês, havia muitos que só queriam vê-los executados ou exilados. Não foi uma cena agradável. Foi nesse momento em que ficou clara a diferença entre vocês dois: ninguém queria tocar no filho do general e herói da nação. Houve uma negociação longa e chegaram a uma decisão bem simples: a punição dele seria sua morte. Quem e interessaria pela vida de só mais um guerreiro, não é?

“No dia da execução, eu estava lá. Fiquei encarregado da sua alma e estava esperando tranquilamente até a hora certa. Foi a primeira vez que eu vi tanta força em alguém prestes a morrer, V. Sua cabeça estava erguida, seu olhar não vacilou um segundo sequer, mesmo com a espada apontada diretamente pra você. O único momento em que fechou os olhos foi quando a espada veio, e não foi por medo: era você aceitando seu destino. Realmente era... Mas Jimin mudou tudo.”

“Eu só o vi chegando porque não sou humano, mas ninguém ali entendeu como tudo aconteceu. Pela velocidade que ele chegou, ele podia ter feito tanta coisa. Se estivesse armado, poderia ter matado ao menos uns 4 guardas até chegar em você e te libertar. Poderia ter te soltado e corrido para que fugissem juntos, ele sabia que você conseguia acompanhá-lo. Mas acho que ele sabia que isso não garantia nada, nem que vocês fossem viver juntos, nem que não seriam encontrados, nem que conseguiriam escapar. Então o que ele escolheu foi a única coisa que importava pra ele: você, Taehyung.”

RM esperou um pouco para que V absorvesse aquilo antes de continuar. Viu que a mão dele tremia um pouco quando ele foi colocar o cabelo para trás, mas no geral ele parecia estável. Por precaução, pegou a garrafa de soju que ele deixara de lado e afastou um pouco dele, já que ela estava cheia de novo.

- Acho que essa foi a parte que você viu. – Continuou. – Não há como prever um auto sacrifício. Ele se colocar entre você e a espada não foi suicídio, foi uma escolha baseada no que ele achava que era certo. Até naquele momento havia pureza nos atos dele. Ele morreu sorrindo, porque sabia que aquilo concretizava o que ele sempre quis: uma vida inteira ao seu lado. Aquela foi minha primeira surpresa naquilo tudo. Eu fui ali levar a sua alma e a que veio até mim foi a de Jimin. Era como se vocês tivessem se tornado um só. Ainda havia a ligação entre você e eu, mas ele entrou nela como se aquilo fosse pra acontecer desde o início. Ele disse que não tinha mais nada pendente e Atravessou sem hesitar.

“Tive que esperar para te buscar, mas confesso que não demorou muito. Houve uma comoção enorme sobre a morte de Jimin e eles precisavam de alguém para ‘culpar’. Você ainda estava vivo, já que Jimin levara maior parte do golpe, então dá pra saber pra quem sobrou nisso tudo. Mas você não facilitou pra ninguém, V. Estava sangrando e de luto, ainda assim descontou sua raiva em alguns guardas antes de finalmente ser preso. Te deixaram pra morrer na prisão pelos ferimentos da execução e da luta, mas você ainda resistiu. Fui surpreendido de novo quando fui te buscar e você me expulsou como se soubesse muito bem o que eu era. Teimou que precisava ver o general até finalmente te levarem, já que acreditavam que você não faria nada do estado que estava. Mas estavam errados... E como estavam.”

“A última coisa que você fez foi matar o general e estava para chegar no Rei quando finalmente foi morto. Quando cheguei pra te levar, a primeira coisa que me perguntou não foi nada do tipo ‘quem é você? Pra onde eu vou?’, você só queria saber onde Jimin estava. Quando eu te disse o que ele fez, fiquei com receio de você fosse vagar pela eternidade até encontrá-lo, então ofereci uma escolha diferente. Foi assim que se tornou um de nós, V.”

- Por que eu estou sabendo disso só agora? – Taehyung disse entredentes, com a mão fechada pressionada contra a testa e os olhos fechados com força. – Como isso é possível? – Sua voz tremia, suas mãos também. RM lhe devolveu o álcool, mas ele recusou com um gesto brusco que jogou a garrafa longe. Ele se levantou arrancando o cachecol novamente e nem sequer se deu conta quando ele saiu voando para o mar. Tirou o sobretudo, levantou o casaco e avaliou a si mesmo. Lá estava, destacando-se clara na pele bronzeada do peito: uma cicatriz que se ramificava levemente como uma rachadura que ia desde a base das costelas até quase o esterno.

Deixou o casaco cair de volta para o lugar e se voltou para RM novamente, numa confusão de sentimentos e perguntas visível em seu olhar e em toda sua postura. O modo como ele perdeu o equilíbrio e caiu sentado onde estava antes não tinha nada a ver com o álcool.

- Se eu tenho isso, - ele cutucou o próprio peito. – como eu não me lembro? – Sentia seu coração acelerando cada vez mais enquanto observava RM pacientemente tomando mais um gole do soju antes de responder. Ele observou a garrafa vazia um momento e então finalmente encarou o ceifeiro mais novo.

- Porque você pediu. – Respondeu calmamente. – Você me pediu para fazê-lo esquecer, V.

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